“Conhece o inimigo e conhece-te a ti mesmo e não temerás o desfecho de cem batalhas.” A advertência de Sun Tzu, nascida na China há mais de dois milénios, ressoa hoje em Pequim com uma atualidade desconcertante. A sua estratégia não tem passado por confrontos diretos nem pela ambição de exportar um modelo político universal, mas pela paciência de se tornar indispensável — erguendo, tijolo a tijolo, as bases materiais e diplomáticas de uma hegemonia que deixou de ser hipótese e se tornou evidência. O contraste com os Estados Unidos é gritante: enquanto a China acumula influência com a disciplina de um estratega milenar, Washington desperdiça capital em impulsos erráticos e recuos sucessivos que minam o próprio prestígio da sua liderança.
A história recente é fértil em ironias. Nos anos setenta, Richard Nixon e Henry Kissinger abriram a China ao mundo precisamente para a afastar da União Soviética — a célebre diplomacia do “rapprochement” sino-americano. Procuravam dividir para reinar, enfraquecer e isolar Moscovo, garantindo o predomínio americano. Meio século depois, sem o génio do alemão naturalizado americano Kissinger e o charme de Nixon, surge Donald Trump — ex-apresentador de reality show e empresário tornado presidente pela segunda vez. Mas, ao invés de repetir a astúcia diplomática, faz o contrário: ao reabilitar Vladimir Putin e ao tentar trazê-lo para a sua esfera de influência — esforço em que falhou — acabou por empurrar a Rússia para o abraço de Pequim, consolidando o bloco euro-asiático que a diplomacia americana sempre quis evitar. O que fora jogada de contenção tornou-se, por desatenção e oportunismo, numa peça de unificação.
E é neste cenário que a reunião desta semana em Pequim foi mais do que uma cimeira: foi uma encenação de poder. Xi Jinping, ladeado por Putin e Narendra Modi, ofereceu ao mundo a fotografia que Washington mais teme — a de um eixo político que se afirma sem pedir licença ao Ocidente, sem medo, com poder real, com mercado próprio, com capacidade militar e sem respeito pelos Estados Unidos. Não se trata apenas de retórica. A China afirmou de forma inequívoca que não deixará Moscovo perder a guerra nem enfrentar o isolamento. E essa declaração não é apenas sobre a Ucrânia: é sobre a recusa em aceitar que o Ocidente continue a ditar, sozinho, os termos da ordem internacional.
O caminho até aqui foi trilhado com paciência e método. A China não correu para ocupar o espaço que os Estados Unidos deixaram vazio: simplesmente esperou que Washington desistisse dele. Quando os americanos recuaram de tratados comerciais, Pequim apresentou a sua própria rede de acordos. Quando os americanos se afastaram do Sul Global, Pequim construiu estradas, portos e centrais elétricas. Onde Washington via despesa, a China via investimento; onde os Estados Unidos se limitavam a impor sanções ou a oferecer contratos de curto prazo, Pequim oferecia cooperação duradoura. A Iniciativa Cinturão e Rota, tantas vezes subestimada, foi o instrumento discreto de uma transformação estrutural.
O mapa fala por si. Em África, a China é há anos o maior parceiro comercial, financiando infraestruturas, enviando técnicos, formando quadros. Na América Latina, multiplicou acordos energéticos e acesso a matérias-primas estratégicas. No Sudeste Asiático, tornou-se o comprador decisivo, a fonte de crédito e o arquiteto de redes de telecomunicações. Hoje, se pintarmos de vermelho os países cuja principal parceria é com Pequim, veremos não apenas continentes inteiros, mas a reconfiguração da ordem global. O comunismo desapareceu como bandeira ideológica, mas o comércio substituiu-o como ferramenta de domínio.
É esta a essência da nova guerra fria: não a disputa militar de outrora, que opunha superpotências em blocos fechados, mas uma competição económica, tecnológica e política em que a China aparece sempre como a alternativa. Os Estados Unidos acreditaram que poderiam reduzir as suas relações externas a uma soma de negócios, contratos e bases militares. A China demonstrou que o poder não se limita à dissuasão bélica: constrói-se com cadeias de valor, dependências financeiras, tecnologias críticas e presença simbólica.
É neste tabuleiro que a Rússia se torna peça útil. Para Putin, a mão estendida de Pequim é oxigénio político e económico; para Xi, Moscovo é o dissuasor que garante que o Ocidente não pode isolar a China sem abrir outro flanco. O recado é inequívoco: quem tentar cercar Pequim acabará por se confrontar com uma frente eurasiática mais sólida do que qualquer cálculo ocidental admitia.
Também a Índia, com a sua ambiguidade calculada, desempenha um papel central. Ao marcar presença em Pequim, Nova Deli não abdica das suas relações com Washington, mas sinaliza que não se deixará arrastar para um mundo dividido em dois blocos rígidos. É a prova de que a diplomacia multipolar não é um discurso vazio, mas uma estratégia deliberada de grandes potências que procuram maximizar a sua margem de manobra.
No fundo, a chave também está no Sul Global. Nas capitais africanas e latino-americanas, nas cidades em expansão da Ásia, a China não é um tema abstrato: é a estrada que se constrói, a central elétrica que se inaugura, o crédito que chega sem condicionalidades políticas. É também o hospital, a escola e a formação técnica. Washington esqueceu-se de que o poder não se mede apenas em PIB ou em porta-aviões, mas na capacidade de estar presente onde outros se ausentam. Foi precisamente nesse espaço que Pequim se instalou, não como filantropia, mas como estratégia e investimento.
A questão financeira acrescenta outra camada. A China é o segundo maior detentor estrangeiro de dívida americana, o que cria uma interdependência que impede ambos de se libertarem sem custos devastadores. Pequim não controla Washington, mas sabe que o sistema é demasiado entrelaçado para permitir movimentos bruscos. Esta teia de dependência é, paradoxalmente, a maior arma de dissuasão: nenhuma das partes pode quebrá-la sem se ferir gravemente.
Os Estados Unidos, porém, parecem não compreender que a paciência é também uma forma de poder. A sua política externa tornou-se refém da pressa eleitoral e da miopia estratégica. O “pivot to Asia” de Obama perdeu-se em guerras intermináveis no Médio Oriente; Biden foi um vazio; o multilateralismo evaporou-se com Trump; o pragmatismo transformou-se em transação. A América não perdeu o poder militar nem a capacidade financeira, mas perdeu a narrativa. E é essa narrativa que hoje a China oferece ao mundo: a promessa de desenvolvimento, de respeito pela soberania e de presença constante, sem exigências e interferências políticas.
O que se desenha não é uma mera rivalidade: é uma transição de centro de gravidade. O eixo político, económico e simbólico já não passa exclusivamente por Washington. Passa por Pequim, por Moscovo, por Nova Deli, por capitais que aprenderam a viver sem esperar pelo aval ocidental.
A nova arte da guerra não se vence em batalhas campais, mas em portos, em corredores energéticos, em cabos submarinos, em mercados abertos. A China compreendeu-o. Washington ainda não. E é nessa assimetria de visão que reside o futuro: não o de um mundo dividido em dois blocos como no passado, mas o de uma ordem em que os Estados Unidos correm o risco de se autoexcluir, enquanto a China, com a paciência de Sun Tzu, já se comporta como se tivesse vencido.