Causou estranheza, embora talvez não surpresa, a tácita viragem à direita da tática política de Luís Montenegro, plasmada nas sete decisões anunciadas no fecho do Congresso do PSD no passado domingo, nomeadamente as que dizem respeito à segurança e imigração e à disciplina de Cidadania e Desenvolvimento.
As implicações estruturais de cada uma destas medidas são muito diferentes. Para a imigração, desde a extinção das manifestações de interesse, já sabíamos que se seguiria uma política de portas semicerradas, e anuncia-se agora a criação de centros de instalação temporária em Lisboa e no Porto para imigrantes ilegais e irregulares – a ver vamos que condições terão e como serão tratadas as pessoas que lá forem parar.
Mas as outras, incluindo a deriva securitária (reforçar a visibilidade de polícias na rua; “incrementar com maior abrangência os sistemas de videovigilância”) acabam por ter um carácter marcadamente simbólico. Esse é claramente o caso da anunciada reformulação da disciplina de cidadania. A intenção, essa, quer anunciar-se benigna, em nome de uma alegada neutralidade da educação e dos “interesses” e “sentimentos” da “população portuguesa”. A esse propósito, recordemos a ideia de uma educação neutra e livre de “ideologias” e algumas das suas reverberações.
Uma educação livre de valores?
Há, com certeza, versões elaboradas da ideia de neutralidade na educação. A mais famosa das quais encontra-se na defesa, por Max Weber em A Ciência como Vocação, de um conhecimento disciplinar “isento de valores”, marcado por uma certa ascese do educador que visa atingir a objetividade naquilo que ensina, evitando, tanto quanto possível, ‘contaminar’ o conteúdo daquilo que ensina com os seus próprios juízos de valor. Aí, a neutralidade axiológica seria uma virtude e o educador teria por dever ‘deixar à porta’ da sala de aula as suas próprias crenças e convicções.
Deixemos de lado a discussão de saber se esse é um ideal totalmente atingível e se o é igualmente em todos os domínios do saber; diga-se apenas, de passagem, que o grau da sua obtenção não será indiferente ao domínio no qual se pretenda ver aplicado. Não é a mesma coisa ensinar ética ou matemática e existem domínios nos quais a distinção entre o que é facto e o que é valor é mais escorregadia e difícil de determinar.
Mas convenhamos que o nível a que estas discussões surgem na discussão política quotidiana é geralmente bastante mais redutor e, claro, ideologicamente motivado. Tomemos o movimento brasileiro “Escola sem Partido”, do qual Bolsonaro foi um forte aliado. Apresentando-se como um movimento contra doutrinações ilegítimas, tratava-se na verdade de um grupo ultraconservador altamente politizado que promoveu denúncias de professores e esteve ligado a diversos casos de assédio moral. Como é evidente, não havia aí nenhum objetivo de neutralidade, mas de neutralização (dos que viam como inimigos políticos) com recurso a todos os meios possíveis.
Esta segunda-feira, o primeiro-ministro reiterou que rever os conteúdos de Educação para a Cidadania era uma “bandeira” que interessava à população portuguesa. Será? Mas o que existirá nesses conteúdos programáticos de tão preocupante que tenha de ser erigido em preocupação cimeira dos portugueses? Serão os direitos humanos, a igualdade de género, a interculturalidade, o desenvolvimento sustentável, a educação ambiental ou a saúde? Será a informação relativa à educação sexual ou participação democrática? Ou será que, na verdade, se está a alinhar com a mitologia da alegada “ideologia de género” tão propalada pela extrema-direita noutras latitudes?
É sintomático que, na segunda-feira, quando questionado sobre o tema, o ministro Fernando Alexandre tenha começado por assinalar “preocupação das famílias” com a “educação sexual” nas crianças mais novas, mas, assim que instado a dar um exemplo concreto… não tenha podido apresentar nenhum. Há razões para pensar que este é um problema empolado por razões meramente táticas, precisamente porque ao alegadamente recusar a ideologia se pretende ocupar simbolicamente um espaço político.
Na verdade, o que está aqui em causa é muito mais a tentativa de negação ao sistema educativo do poder de formar sobre matérias que eventualmente possam, por razões de crenças privadas, ser sensíveis a algumas famílias. Ou seja, é uma questão dos potenciais limites da esfera pública e da instituição educativa na sua relação com a esfera privada. Mas remeter essa questão para a ideologia, sub-repticiamente acusando a escola de estar a “doutrinar” o que quer que seja de forma enviesada, é um tanto ou quanto absurdo.
Até porque, se adotarmos uma definição lata de ideologia simplesmente como um conjunto de crenças e valores que pretendam ser válidas para uma determinada comunidade, na verdade nunca se escapa totalmente às ideologias, porquanto estas configuram um conjunto de decisões básicas sobre quem somos enquanto coletivo.
Por outras palavras, quando o primeiro-ministro, no encerramento do Congresso no domingo, apelava para um “reforço dos valores constitucionais” nesta disciplina, acabava por também estar a remeter para qualquer coisa como uma ideologia de base na qual queremos que a população se reveja; e em qualquer regime a educação sensibiliza para os valores que são dados como os desejáveis; por conseguinte, se vivemos em democracia e queremos promover valores (como os direitos humanos, para dar só o exemplo mais básico), incluindo valores epistémicos como os da aquisição de conhecimento, o que se espera é que formemos tendo-os também em conta. E é isso, salvo melhor opinião, que me parece ser também aquilo que uma disciplina como estas pretende promover.
Diz-me que agenda compras, dir-te-ei em quem te tornas
O que também não foi nada surpreendente foi a forma como o Chega veio reclamar a autoria das decisões anunciadas pelo primeiro-ministro nesse discurso de encerramento, o que nos leva a questionar-nos sobre até onde está o partido de Montenegro e o próprio governo dispostos a ir para marcar terreno político.
Que daria jeito à AD neutralizar o seu extremo mais à direita, disso não restam dúvidas. Mas não basta ao PSD tentar demarcar-se do Chega com o slogan do “não é não”. Também é preciso que, na ânsia de esvaziar a agenda política (e, logo, a força eleitoral) deste partido, o PSD não caia na tentação de se ir paulatinamente aproximando dele. É que, muitas vezes, a vitória da extrema-direita não está em chegar ao poder, mas em transformar de tal maneira a agenda e o debate público que acaba por ver aprovado o que sempre quis.
É que o equilíbrio dos grandes partidos do centro português tem que ser sempre gerido com alguma fineza; se o PSD pretender fagocitar a direita mais extrema, arrisca-se a perder o centro; e, a acontecer, isso também significaria um deslocamento da política na qual, provavelmente, a maior parte dos portugueses não se revê.