Aconteceu-nos o que nunca esperámos e, nos dias que correm e na maior parte dos casos, aguarda-se em casa tempos melhores, sem sabermos exactamente como é suposto gastar o tempo.

Confesso que, no primeiro dia em que me deparei com quase tudo encerrado, me vieram lágrimas aos olhos. O vazio é algo com que a natureza humana, pelo menos a minha, não lida bem. Principalmente quando é interrompido por conferências de imprensa de cariz algo exótico (e não apenas pelos animais que surgem, amiúde, na lapela de uma das intervenientes) que não têm a capacidade de nos tranquilizar.

Contudo, quero crer que, depois destes dias, nada será como dantes, quanto mais não seja porque vimos retiradas coisas que sempre demos por adquiridas e, não tenho dúvidas, aprenderemos a sobreviver sem elas. Um bom livro, um copo de vinho para os que ainda podem, sorrisos ainda que virtuais com a família e amigos. E, lá está, a reconciliação connosco, já que, até aqui, a voragem destes últimos tempos nos engolia até os melhores sentimentos.

Este é, portanto, o tempo da reflexão e, se calhar, de nos virarmos para o essencial.

Enquanto os órgãos de comunicação social nos inundam com a Covid-19, prestando as devidas – justas, justíssimas – loas aos profissionais de saúde que, antes, haviam cruxificado (veja-se, por exemplo, o caso dos enfermeiros), a minha atenção está também – como não podia deixar de ser – nos estivadores. Em aditamento ao meu artigo prévio, os estivadores de Lisboa mantêm-se sem receber, sujeitos à obrigação de serviços mínimos e agora, pelo menos aparentemente, impedidos de aceder às instalações por um administrador de insolvência que não terá demorado muito mais do que uma dia para tomar tal inusitada decisão.

De novo, enquanto se tenta largar para o desemprego perto de centena e meia de trabalhadores, não sem antes os obrigarem a trabalhar em condições de segurança duvidosas e sem retribuição, umas empresas criadas ao lado oferecem umas vagas apenas a alguns deles, aproveitando também o clima de pânico para o fazer despercebidamente.

A isto, o Governo diz nada, como pouco diz quanto à falta de reais condições de segurança quer quanto a estes, quer quanto aos trabalhadores de outros portos, quer quanto aos trabalhadores da área da saúde.

Fingir que não está a acontecer trouxe-nos até aqui. A questão é onde conseguiremos chegar se não encararmos a realidade de frente. Ser solidário não é, apenas, andar ao sabor das causas que a comunicação social nos procura impor, fazendo uns gostos em publicações de redes sociais. É estar atento. Reclamar. E, quando possível, dar as mãos, ainda que hoje só virtualmente. Hoje são eles. Amanhã podem ser vós.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.