Portugal tem sido percussor na aposta e prossecução de uma economia neutra em carbono, alicerçada em fontes de energia renovável. Testemunho disso são as diversas medidas tomadas em prol da transição energética em leis do orçamento do Estado, o ambicioso PNEC 2030 ou os badalados leilões de energia solar. Contudo, há uma dimensão crítica para qualquer investidor que é demasiadas vezes descurada: a estabilidade regulatória. Exemplo paradigmático deste problema é a instabilidade reinante desde 2020 em torno do mecanismo designado por clawback.

Em síntese, o clawback é um mecanismo que tem em vista assegurar o equilíbrio concorrencial no mercado grossista da eletricidade. No fundo, procura corrigir, a expensas dos produtores, distorções provocadas por eventos extramercado que impliquem um aumento dos preços médios no mercado grossista e proporcionem ganhos “anormais” aos produtores nacionais. Como exemplo, refira-se o imposto espanhol de 7% sobre a produção de energia elétrica, o qual, não sendo aplicável em Portugal, poderia originar ganhos para os produtores portugueses cuja remuneração depende da venda de energia no mesmo mercado que os congéneres espanhóis (o MIBEL).

Discussões à parte sobre o mérito do clawback, certo é que desde cedo se colocaram dúvidas quanto ao seu âmbito de aplicação. Isto porque diversos produtores de energia renovável celebraram power purchase agreements (PPA) com comercializadores, ao abrigo dos quais a energia é adquirida por um preço fixo que não está indexado aos preços diários formados no MIBEL. Quer isto dizer que tais produtores não vendem no mercado e, como tal, não beneficiam de eventos extramercado que o clawback visa corrigir.

Para dissipar as dúvidas, em dezembro de 2019 o Secretário de Estado da Energia (SEE) veio esclarecer por despacho que tais produtores, à partida, não estarão sujeitos ao clawback (iniciativa que saudamos). Contudo, os esclarecimentos não se ficaram por aqui e de despacho em despacho chegámos a uma situação em que o atual entendimento do SEE, sem respaldo na lei, é o seguinte: mesmo que um produtor não esteja sujeito ao clawback por receber um preço fixo que é alheio ao mercado ao abrigo de um PPA, o comercializador estará àquele sujeito se vender subsequentemente a energia adquirida no MIBEL. Em que moldes? Na ótica do SEE, a solução afigura-se simples: o comercializador deverá liquidar ao produtor o valor correspondente ao clawback.

Assim, por via de esclarecimento feito por despacho, acabou por se estender encapotadamente o âmbito de aplicação do clawback a comercializadores. Pois bem, a ter-se por válido o teor deste esclarecimento – o que nos parece no mínimo questionável –, os produtores e comercializadores que tenham celebrado PPAs sob o pressuposto legítimo de que o clawback apenas se aplicaria a produtores que vendessem a sua energia em mercado, veriam agora o equilíbrio económico-financeiro dos seus contratos afetado por uma decisão que altera as regras a meio do jogo; com a agravante, neste caso, de ser tomada com uma significativa dose de ativismo administrativo que parece desconsiderar a hierarquia constitucional normativa.

Lamenta-se, assim, que uma bem-intencionada iniciativa clarificadora redunde num caso flagrante de instabilidade regulatória. Esperemos que tal não abale a confiança de quem cá está ou daqueles que equacionam vir, pois o país precisa claramente atrair e reter agentes económicos que ajudem a cumprir as suas ambições futuras.