Coco é o título de um extraordinário filme de animação da Pixar (Walt Disney) atualmente em exibição. Coco é o nome próprio de um personagem do filme, a bisavó do protagonista, Miguel. Aparentemente trata-se de um filme para crianças, mas, na verdade, trata-se de um filme também para pais, avós, bisavós, para toda a gente – viva e não-viva.
A versão mais curta do plot divulgada pela Disney é: “O candidato a músico Miguel, confrontado com a ancestral proibição familiar de ouvir ou interpretar música, entra no Mundo dos Mortos para resolver aquele mistério”. A ação decorre durante El Dia de los Muertos no México (entre 31 de outubro e 2 de novembro), que se carateriza pela criação de altares para celebrar os mortos com as respetivas fotografias e a confecção de pratos tradicionais.
O filme introduz no mundo infantil o tema da morte procurando dar às crianças uma resposta positiva e duradoura sobre o desaparecimento de familiares. A mensagem principal é que só se morre depois de sermos esquecidos pelos que ficaram vivos (“a morte total”). A vida eterna é provisória pois só é garantida enquanto perdurarmos na memória daqueles que nos conheceram, enquanto de nós se lembrarem.
“Lembra-te de mim”, a canção de Hector, explica tudo: “Lembra-te de mim, apesar de te dizer adeus / Lembra-te de mim, não deixes que isso te faça chorar / Porque mesmo que esteja longe, eu tenho-te no meu coração / Eu canto uma canção secreta para ti, cada noite que estivermos separados / Lembra-te de mim, apesar de eu ter de viajar para longe / Lembra-te de mim cada vez que ouvires uma guitarra triste / Sabe que estarei contigo, do único modo em que poderei estar / Até quando voltares a estar nos meus braços, lembra-te de mim…” (tradução do autor deste texto).
O filme aborda temas que não são apenas mexicanos mas universais – a universalidade é uma especialidade de Hollywood – e é fácil verificar que vários deles se aplicam diretamente a costumes, valores e tradições de Portugal. Coco tem quatro leitmotiv principais, qualquer um deles de abordagem complexa num filme supostamente infantil: vida, morte e o que se lhe segue; valores tradicionais (deferência pela autoridade familiar versus valores seculares e de autonomia pessoal); liberdade para escolher, direito à criação, de expressão e à diferença; e o poder evocativo da música.
O resultado é magistral. No final da sessão a que fui – que com 109 minutos é particularmente longa num filme para crianças, mas que conta com uma excelente dobragem para português –, a audiência, com muitas crianças e respetivos progenitores, aplaudiu. Outros temas, alguns deles surpreendentes num filme para uma audiência muito jovem, são o respeito pelos velhos e pelos direitos das crianças; o respeito pelas pessoas com doenças da velhice (para o caso, Alzeihmer, embora nunca como tal referida); machismo; os direitos de autor e respetiva usurpação; a família como polo de solidariedade, mas no respeito pela liberdade individual.
O guião inclui pretextos ainda para referir novas tecnologias, como reconhecimento facial e a lembrança de grandes figuras da música, cinema e arte mexicana como Cantinflas e Frida Khalo. Há outras evocações, como o cenário de Metropolis, o filme de Fritz Lang de 1927. Não reparei que o filme incluísse qualquer referência ou símbolo religioso, mantendo-se num patamar de fantasia de certo modo pagão ou, talvez melhor ainda, ecuménico.
Vejo Coco como uma expressão artística do World Values Survey (WVS), que já aqui referi várias vezes. Ao longo dos anos, o WVS tem demonstrado que as crenças (beliefs) das pessoas têm um papel no desenvolvimento económico, na emergência e desenvolvimento de instituições democráticas, na igualdade de género, e como contributo para que as sociedades tenham governação eficaz.
Os inquéritos de WVS feitos em muitos países procuram determinar onde é que as sociedades se colocam no que respeita às dicotomias Valores Tradicionais vs. Valores Seculares-Racionais e Valores de Sobrevivência vs. Valores de Auto-Expressão. O resultado é resumido no Mapa Global Cultural e mostra como muitas sociedades se colocam nestas duas dimensões. Indo de baixo para cima, há o movimento dos valores Tradicionais para os Seculares-Racionais e indo da esquerda para a direita, o movimento dos valores de Sobrevivência para os de Auto-Expressão.
Os valores Tradicionais enfatizam a importância da religião, relações pais-filhos, deferência pela autoridade e valores tradicionais da família. Os valores Seculares-Racionais são o oposto dos anteriores. Os valores de Sobrevivência colocam a ênfase na segurança económica e física, estando ligados a uma visão de certo modo etnocêntrica como baixos níveis de tolerância e confiança. Os valores de Auto-Expressão colocam a prioridade na proteção ambiental, crescente tolerância em relação aos estrangeiros, orientação sexual e crescente exigência de participação nos processos de decisão da vida económica e política.
O gráfico revela que o México é uma sociedade ainda muito impregnada pelos valores Tradicionais e de Sobrevivência, tal como refletido no filme Coco, embora no que respeita à auto-expressão apresente um valor superior ao de Portugal, que ocupa o exato centro. Não se distingue em nenhuma das dimensões, como por exemplo a Suécia, que apresenta o maior índice nos valores Seculares-Racionais e de Auto-Expressão.