As vendas multimilionárias contrastam com a vida modesta e de pouca fama do pintor. Oriundo de uma família da burguesia judaica, adoeceu um dia com febre tifóide e, durante um sonho delirante, teve a revelação de que seria artista. Na sua breve vida, Modigliani teve pouco êxito. Agora, as suas criações valem muitos milhões.
No dia 15 de maio de 2018, a obra “Nu deitado (sobre o lado esquerdo)”, atingiu um dos valores mais altos de sempre num leilão, ao ser transacionada por 157,2 milhões de dólares (140,3 milhões de euros) pela Sotheby’s. O nome do comprador não foi revelado. A nudez da pintura levou a fechar a exposição de Amadeo Modigliani na galeria Berthe Weill, de Paris, em 1917. Pintada três anos antes da morte do artista, aos 35 anos, mostra uma mulher nua, de costas, reclinada. Apresentada na primeira exposição a solo de Modigliani em Paris, a tela, de 147 por 89 centímetros, é o maior nu das famosas séries que pintou.
“Esta é uma das maiores pinturas modernas em mãos privadas”, revelou Simon Shaw, codiretor de arte impressionista e moderna da leiloeira Sotheby’s, acerca da obra de Modigliani. “A escala, o poder, a subtileza, o ótimo nível de acabamento. Modigliani pintou para que o quadro fosse uma obra-prima”, acrescentou o mesmo responsável.
Em 2015, outro quadro do artista italiano, “Nu deitado” já tinha causado furor. A obra foi vendida por Laura Mattioli Rossi, filha do colecionador italiano Gianni Mattioli. De acordo com o ‘The Wall Street Journal’, a obra foi adquirida pelo investidor bilionário Liu Yiqian e pela sua mulher, Wang Wei. Este quadro foi o décimo a ser vendido por um valor acima dos nove algarismos e a licitação foi bastante tensa, como relatou o diário norte-americano. Houve seis pessoas a disputarem a obra, que durante nove minutos viu os lances a subirem até que uma ordem telefónica vinda da China acabou com a oposição dos outros interessados.
Na altura em que foi pintado, este quadro provocou escândalo pois, quando foi mostrado pela primeira vez pelo pintor, em Paris, houve manifestações à porta da galeria e a polícia teve de encerrar a exposição. Tudo isto parece contribuir para captar a atenção de investidores espalhados pelo mundo.
“A arte tornou-se uma importante arena de rivalidade internacional”, afirma a Artprice, uma das maiores consultoras mundiais no que diz respeito a este mercado. Um combate, diz a analista, que não se trava apenas no mercado de vendas primário e secundário. Trava-se também naquilo a que passou a chamar-se “indústria museológica”. O “Global Art Market”, relatório da Art Basel e da UBS, referente a 2019, feito pela especialista e economista cultural Clare McAndrew, aponta para aí.
Apesar de os Estados Unidos continuarem a liderar, a China segurou a segunda posição entre os maiores mercados de arte. Uma revolução cultural conquistada ao longo das últimas décadas. Em 1949, quando o Partido Comunista assumiu o poder, o colosso asiático tinha duas dezenas de museus. Hoje são mais de três mil, com uma abertura, em média, de 200 por ano. Este número é cinco vezes superior às inaugurações nos Estados Unidos antes do crash de 2008.
O mercado global de arte atingiu em 2018 o segundo maior valor dos últimos dez anos (2008-2018), arrecadando um valor anual de vendas na ordem dos 67,38 mil milhões de dólares (60,1 mil milhões de euros). Os três principais mercados de arte são os Estados Unidos, a China e o Reino Unido, cujo processo de Brexit não parece fazer tremer o negócio dos colecionadores.
As feiras de arte e os leilões continuam a ser o método preferido dos colecionadores para adquirirem obras. Porém, o comércio online tem fidelizado compradores no último ano – em 2018, o mercado de arte online atingiu um valor de seis mil milhões de dólares (5,3 mil milhões de euros), um aumento de cerca de 11% face ao ano anterior, como se pode consultar no relatório, disponível no site www.ubs.com.
Arte dos negócios impossíveis
Larry Gagosian é um dos homens mais poderosos do mundo da arte descrito em “Global_Art Market”. Sabe quem são os colecionadores que detêm as obras de arte mais valiosas e até o sítio onde estão escondidas.
Neste universo há um contrassenso: não é preciso saber pintar ou esculpir para valer tanto como Picasso, Monet, Richard Serra ou Frank Stella. Se um político deve ter o dom da palavra para conquistar os eleitores e um futebolista tem de tratar bem a bola para empolgar os adeptos, neste mercado as regras são diferentes. O marchand Larry Gagosian é a prova disso. Ele não pinta, não desenha, nem esculpe, mas mesmo assim já foi eleito o homem mais poderoso do mundo artístico pela revista americana “Art Review”.
Gagosian reúne frequentemente alguns colecionadores de obras de arte e convence-os a gastar dinheiro. Muito dinheiro. Há uns anos, o escultor Richard Serra pediu emprestada a galeria de Gagosian, no bairro nova-iorquino de Chelsea, para uma ação de beneficência a favor de um lar de crianças pobres de Manhattan. Para vender estavam obras de Roy Lichtenstein, Elizabeth Peyton e Malcom Morley. No interior da galeria, a soprano Jessye Norman e a presidente emérita do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, Agnes Gund, deliciavam-se com as obras. Em pouco mais de duas horas, estas e outras personalidades já tinham contribuído com quase dois milhões de euros. Gagosian, o anfitrião da noite, também lá estava. E não era só para emprestar o espaço ou rever os pouquíssimos amigos que tem (Abramovich é um deles). De repente, com um discreto aceno de mão, ofereceu 310 mil dólares por uma aguarela do inglês Malcom Morley.
A jogada foi brilhante. Gagosian não comprou o quadro só para ajudar as crianças órfãs. Fê-lo como pura ação de marketing pessoal. Ou seja, quando Gagosian compra um quadro, isso significa automaticamente que a obra é valiosa. E, mesmo que não seja, os colecionadores privados vão pensar que é. Portanto, dentro de alguns anos, a aguarela de Morley pode transformar-se num negócio de um milhão de euros. O poder de inflacionar os objetos está-lhe no sangue.
Além das vernissages, o galerista costuma organizar grandes festas na mansão onde reside, em Nova Iorque. Todos os detalhes são pensados cuidadosamente. Afinal de contas, Gagosian é mestre na arte do marketing. Se ele estivesse a vender tupperwares, o êxito seria o mesmo. “As festas têm provavelmente a ver com negócios, mas não é isso que sentimos”, disse o ator e colecionador Steve Martin ao ‘The New York Times’. “Ele é um grande anfitrião, sorri quando o cumprimentamos e serve excelente comida. Há pessoas interessantes, escritores, pessoas de Wall Street e artistas. E quando vamos lá para uma festa dedicada a um artista, parece mesmo uma festa para esse artista, e não uma mera ferramenta de vendas”, acrescentou o ator.
Depois de algumas horas de diversão e quando todos os convidados estão ambientados, Gagosian trata dos assuntos sérios. Não interrompe os mergulhos na piscina nem pede aos empregados para deixarem de servir cocktails. O que ele manda é trazer para a zona nobre da festa as obras dos artistas que tem para vender. Tanto pode ser Andy Warhol como Cy Twombly. A seguir promove um leilão entre os convidados. Alguns deles, inebriados por estarem ali e com vontade de darem nas vistas, começam a comprar desenfreadamente.
Este marchand é dos poucos a conseguir coisas praticamente impossíveis. Saber vender é uma arte, mas o grande trunfo é saber onde se encontra o material. As obras raras, que valem muitos milhões, não estão nas lojas nem expostas em galerias. Estão em locais secretos, na casa dos colecionadores. Gagosian é capaz de descobrir um cavalo de Susan Rothenberg na sala de jantar de um negociante de arte, ou um Picasso pendurado na parede da mansão de um magnata europeu.
A seguir, é preciso registar o momento. Nesta profissão, é importante ter boa capacidade de memorização, mas quando se é intermediário de obras de arte é preciso mostrar uma imagem ao cliente. Por isso, o marchand usa uma máquina Polaroid para fotografar as peças que estão em casa dos colecionadores. Pendurados na parede, em cima de estantes, ou até escondidos em gavetas, nada escapa a Gagosian. Ele fotografa sem o proprietário perceber, revela as fotos e anota o preciso local em que captou a imagem. Claro que na ficha técnica do objeto também constam a hora e o dia da fotografia.
No entanto, há um detalhe que nunca entra nessa ficha técnica – o preço estimado da obra de arte. Apesar deste mundo funcionar como o mercado bolsista, aqui as “ações” não têm um preço transparente. Funcionam como a lei da oferta e da procura, mas não há um regulador financeiro. Ou melhor, até há, mas tem outro nome. Chama-se Gagosian e a influência dele é tanta que consegue fazer subir o valor de um quadro ou, nos casos mais difíceis, mantê-lo a um preço justo. Quanto mais inflacionada for a obra de arte, maior a comissão que irá ganhar. Alguns negócios podem chegar aos 55 milhões de euros.
Os clientes nunca perdem dinheiro com este negociador implacável. Um cliente chamado Harvey S. Shipley Miller, contou ao ‘The New York Times’ um episódio memorável. Foi ter com Gagosian para comprar um desenho de Cy Twombly. Tentou regatear o preço da obra, mas isso foi impossível. “Ele não se mexeu”, recordou Miller. “Disse-lhe: ‘Que tal um desconto de 70 mil euros?’ ‘Não’, respondeu Gagosian. ‘E se forem 20 mil euros?’ ‘Não, não posso.’” “Ok, Larry”, disse Miller, já irritado. “E se for um dólar? Podes fazer-nos um desconto de um dólar?” “Bem, não. Mas deixa-me dizer-te uma coisa”, respondeu Gagosian. “Pago-te o almoço.” “Não, obrigado, estou a fazer dieta’”, respondeu Miller.
Esta forma de agir tem um lado mau – é impossível ter direito a um desconto. E outro lado bom – quando o comprador quiser vender, sabe que irá beneficiar do mesmo empenho do marchand. Gagosian, de 73 anos, divorciado e sem filhos, abriu a sua primeira galeria em 1979, em Nova Iorque. Tem ainda galerias em Londres, Roma, Atenas e Los Angeles. E este mês abriu uma nova, a nona, em Paris. Waring Hopkins, fundador e diretor da galeria Hopkins-Custot, acredita que Gagosian se tornará, “instantaneamente, um dos mais importantes galeristas em Paris”.
O empresário também se preparou bem para resistir às crises financeiras que já ameaçaram o setor. Em 2007, enviou um email aos membros da sua equipa, ameaçando despedir quem não vendesse. “O luxo de manter funcionários com mau desempenho é agora uma coisa do passado”, escreveu. Apesar de se movimentar na alta-roda dos milionários, nasceu numa família modesta. O pai era contabilista e a mãe uma atriz que se tornou dona de casa. Tirou uma licenciatura em Inglês na Universidade da Califórnia (UCLA) e, após o curso, trabalhou na William Morris, agência da área do entretenimento, antes de se despedir para vender pósters perto da universidade onde estudou.
Mais tarde começou a vender fotografias de artistas como Diane Arbus e Lee Friedlander. A pouco e pouco, foi ganhando influência e poder, ao ponto de tratar por “tu” os melhores artistas da atualidade. Hoje, além das festas na mansão no Upper East Side de Manhattan e dos investimentos em arte, gasta dinheiro em fatos Hermès e viagens em avião privado. Detesta falar aos media. Os amigos e clientes desligam o telefone e recusam-se a falar sobre ele, diz a imprensa internacional. As ordens de Gagosian são cumpridas à risca, pois quem tiver sarilhos com ele arrisca-se a nunca vender a obra de arte pelos milhões desejados. E o quadro fica pendurado na parede, ou escondido na gaveta, durante muitos anos.
Artigo publicado na edição nº1989, de 17 de maio do Jornal Económico
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