Em tempo de eleições legislativas há que optar pelo partido político que melhor pode representar as nossas convicções nos próximos quatro anos, na defesa do que queremos para a nossa sociedade, objetivos a atingir e caminhos para lá chegar, e que estejamos dispostos a percorrer.

O foco na política leva-nos a escolher o que queremos para a saúde, para a demografia, para a educação, para a justiça, para a fiscalidade. Mas sabemos que não é indiferente a forma de governar que nos é proposta, nem as pessoas que nos propõem para o fazer, que haverá ajustamentos de percurso em que queremos participar e que, com os mesmos recursos, se podem alcançar resultados muito diferentes. Ou seja, contam também para a decisão do voto, o grau de abertura e de participação cívica prometidas, a transparência dos procedimentos, o combate à corrupção e à cartelização de interesses, as medidas para alterar o estado da Justiça, o respeito pelo pluralismo e a autonomia das instituições.

Entre desafogo económico e prosperidade, vai o perfil das instituições que os possam sustentar. São estas que asseguram permanência e que condicionam decisivamente os resultados de governar, no maior prazo. Com oportunidades e recursos assemelháveis, podemos alcançar padrões de desenvolvimento e de bem-estar substancialmente diferentes, dependendo dos níveis de produtividade e de desempenho na gestão das instituições. Com o foco político apenas, as promessas eleitorais são enganadoras quanto aos resultados expectáveis. Há que lhe juntar o foco em governar. E há que manter a intervenção cívica para além do voto, para acompanhar e exigir, independentemente de quem venha a ganhar e como, como vamos ver.

Além disso, é crónica a nossa inquietação com problemas que se mantêm ou se agravam, mesmo com governos de diferente orientação política. O afastamento dos eleitores nos atos eleitorais e algum alheamento cívico da política, exceto em ações de contestação pontuais e radicais; o funcionamento insatisfatório e frustrante da Justiça; a perceção de níveis de corrupção acima do esperado; a falta de avaliação das principais políticas, que sustente um debate público consistente; a falha nos propósitos reiterados de reformar a contabilidade do Estado e de proporcionar, aí sim, boas contas; a partidarização e captura da administração pública, são exemplos disso.

Vejamos então, com o foco em governar, as principais medidas que os programas eleitorais nos oferecem.

Boas Contas (programa eleitoral do PSD) A RAFE XXI – Reforma da Administração Financeira do Estado para o Século XXI terá como principais vetores: Reorganização de funções, e revisão de despesa associada, transversal a toda a Administração Pública. Implementar uma efetiva orçamentação por programas (OP), definindo para cada ministério objetivos, indicadores e metas … Implementar o SNC-AP (Sistema Nacional de Contabilidade das Administrações Públicas) e, consequentemente, ter uma contabilidade analítica em cada serviço, apurando o custo de cada bem/serviço produzido e de cada departamento interno.

Esta promessa eleitoral incide sobre um instrumento de gestão considerado indispensável há muito, e que é decisivo em matéria de desempenho. Trata-se de uma promessa eleitoral que todos os partidos políticos deveriam fazer. Sem boas contas, não há transparência interna, nem coerência de decisões, nem credibilidade internacional.

A entrada do sistema de contabilidade do Estado estava programada aliás, por disposição legal, para o dia 1 de janeiro de 2017 e falhou. Essa reincidência no incumprimento de disposições legais estruturantes tem uma gravidade acrescida. O próprio Tribunal de Contas o reconhece, apontando sobre a Conta Geral do Estado de 2017 que … continua a não apresentar o balanço e a demonstração de resultados da administração central … baseando-se, ainda, em diferentes sistemas contabilísticos e não refletindo devidamente a situação financeira do Estado.

Escolha de dirigentes e avaliação de mérito (programa eleitoral do PS) … Permitir a escolha e designação das restantes equipas de dirigentes superiores pelos dirigentes máximos dos serviços e institutos públicos, por forma a fortalecer a lógica de funcionamento em equipa e a responsabilização do dirigente máximo pelos resultados; … Reativar a avaliação dos serviços com distinção de mérito associada aos melhores níveis de desempenho e refletir essa distinção em benefícios para os respetivos trabalhadores, garantindo assim o alinhamento das dimensões individual e organizacional ….

São boas medidas de natureza organizacional, permitir que o primeiro responsável por um serviço da administração pública selecione os outros dirigentes dele dependentes, o que não acontece presentemente, tal como voltar às avaliações de desempenho e correspondentes distinções por mérito. Claro que se trata de boas medidas de gestão em si, mas não resolve e pode até agravar um dos problemas que repetidamente apontamos: a partidarização e tentativa de captura da administração pública pelos sucessivos governos, minando o relacionamento desta com os governos seguintes.

A avaliação do desempenho de dirigentes próximos do governo, familiar ou partidariamente, é obviamente condicionada pelo fraco interesse em avaliar o desempenho profissional de alguém cujo ministro conhece e que nomeou recentemente para as funções. Por alguma razão aliás, foram caindo as avaliações. Nem há interesse da parte do ministro, nem há normalmente interesse, da parte dos dirigentes nomeados com aquelas características de proximidade ao ministro, em cumprir com essa elementar ferramenta de gestão, pois o seu relacionamento é mais político do que profissional.

Vale então avançar com essas medidas? Sim, sem dúvida, mas acrescentado outra indispensável, que disponha simultaneamente no sentido de inibir a atividade partidária, obrigando à sua suspensão, no caso dos dirigentes de nível superior da administração pública, enquanto estiverem no desempenho dos respetivos mandatos. Se o risco reside na tentativa de captura da administração pública pelos partidos políticos, a sua prevenção passa então por distanciar e reforçar o estatuto distintivo da entidade alvo, nomeadamente dos seus dirigentes superiores.

Mais ministérios (programas eleitorais do BE e PCP respetivamente) Criar o Ministério da Ação Climática e … um Ministério da Cultura.

Ministérios são estruturas organizativas da administração central. Ministros é que são membros do governo, cuja designação acompanha a sua formação e reflete prioridades e orientações políticas. E a cada ministro, não tem de corresponder o seu ministério. Para quê se, presentemente, para 18 ministros existem 12 ministérios, partilhando 9 o ministério? Porquê mais 1 ou 2 ministérios, e não mais 5 ou 6?

Faz sentido destacar organicamente em outubro de 2019 ação climática, de ambiente e transformação energética, designação adotada pelo atual governo em 15 de outubro de 2018, mantendo todavia o ministro e o ministério, como vinham do antecedente? E faz sentido na cultura, com o intuito de inverter a linha, considerada de esvaziamento e de desresponsabilização, apesar de haver presentemente ministra da cultura com poderes e responsabilidade sobre direções-gerais com orçamentos, estruturas técnicas, meios políticos e humanos? Deve o recorte dos ministérios, como centros de competências da administração central, ser alterado de cada vez que muda o governo, ou que muda apenas um dos ministros? Em que estudos de natureza organizacional se baseiam as propostas para aumentar para 13 ou para 14 o número de ministérios?

Importa, de facto, dissociar ministro, de ministério. São instituições diferentes e obedecem a princípios organizativos distintos. Os ministros, e a designação da respetiva área governativa, decorrem de opções políticas na formação do governo e os respetivos titulares, nomeados pelo presidente da República sob proposta do primeiro-ministro, permanecem em funções pelo período da respetiva legislatura, podendo terminar esse exercício antes, por mera decisão política.

Quanto à estrutura dos ministérios, esta decorre de modelos técnico-organizacionais visando a obtenção de resultados a longo prazo, através da execução de políticas definidas por sucessivos governos e sob sua orientação. Não pode, nem deve, ser modificada com base em critérios conjunturais de formulação política de abordagens e prioridades eleitorais, e, menos ainda, modificada para moldar a administração à personalidade do titular da pasta, proposto ou pretendido. Podem já, ministro e respetiva área governativa, ter a designação política que for considerada conveniente para a formação do governo que decorra das eleições. Não pode ser reestruturada a administração central do Estado ao ritmo das alternâncias governativas para quatro anos, ou menos.

Ministros, com áreas governativas autónomas, podem e devem partilhar ministérios, como acontece presentemente. Tanto mais que, com a aplicação da nova Lei de Enquadramento Orçamental, que tem vindo a ser adiada apesar de ser estruturante em diferentes dimensões, os ministros como os ministérios vão ter de partilhar os próprios orçamentos, organizados por programas com elevado grau de transversalidade. Vai aí acentuar-se a necessidade de colaboração e de articulação de estudos e de planeamento, das políticas e da sua execução.

Reforma da Administração (programa eleitoral do PSD) Reforma do Estado, visando serviços públicos de excelência e eficiência na utilização dos recursos disponíveis, sem preconceitos ideológicos que limitem o leque de opções disponíveis … em matéria de organização dos ministérios – novo Programa de Racionalização de Estruturas … redimensionamento e … requalificação da Administração Pública, procurando incrementar a eficiência e a equidade em áreas centrais da gestão da despesa pública e a melhoria dos serviços públicos.

Dois governos, de orientação política diferente, o primeiro de José Sócrates e o de Passos Coelho, lançaram cada qual o seu programa de reforma da administração central, com um intervalo de cinco anos. O primeiro, cujo relatório considerou ser apenas o primeiro passo, morreu cedo e sem continuidade. O segundo, que não foi articulado com o primeiro, restringiu-se a reduções nas estruturas de nível superior da administração. Foram suficientes para pôr a administração a fazer parte da solução e não do problema? Muda o governo, esquece-se o passado, mesmo de orientação política idêntica. Por outras prioridades, ou por mudar o ministro ou o secretário de Estado apenas, parte-se depois com grande entusiasmo para fazer novo, como se fosse do zero.

A reforma urgente de que necessitamos, dado o estado de desarticulação e de menorização a que chegou a administração pública, deve correr num processo assumidamente pluridisciplinar, programado para um período aceitável e não apenas para reduzir despesa, dispondo de uma condução com condições políticas e de liderança para assegurar esse trabalho no horizonte temporal definido, e contando com a participação da própria administração. Deve passar ainda pela Assembleia da República, uma vez que não se trata da organização do governo e que se pretende que venha a ter um alcance superior ao de uma legislatura.

CRESAP (programa eleitoral do PAN) Reforçar a independência da Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública (CRESAP), transformando-a numa entidade verdadeiramente independente, dotada de um quadro de pessoal próprio e de uma efectiva autonomia administrativa e financeira … consagrar o limite de renovações das comissões de serviço dos cargos de direcção intermédia … consagrar um prazo máximo de 90 dias para a duração da ocupação de um cargo dirigente em regime de substituição, equiparando-o ao regime da gestão corrente … constituir um grupo de trabalho na Assembleia da República para … alterações às regras dos procedimentos concursais para o recrutamento de trabalhadores da função pública que assegurem a existência de processos de recrutamento mais rápidos, mais transparentes, justos e livres de eventuais favorecimentos concedidos em função de ligações políticas ou familiares. 

e (programa eleitoral da Iniciativa Liberal) Expansão do recrutamento dos agentes e dirigentes da Administração Pública feito por concurso público.

A criação da CRESAP, juntamente com o alargamento dos mandatos dos dirigentes para 5 + 5 anos, foram passos certos, no sentido de romper com o círculo vicioso da discricionariedade política e intermitência na administração. Acontece que a CRESAP já foi mais independente, no cumprimento das suas atribuições e no entendimento do seu próprio estatuto. E acontece também que o governo tem abusado das permissões que a lei lhe confere, para substituir temporariamente dirigentes e interromper comissões de serviço com fundamento em alterações orgânicas. Faz assim todo o sentido obstar aos abusos, que desvirtuam a instituição. Faz sentido também, reforçar o seu estatuto de independência, o que poderia passar pela aprovação dos respetivos presidente e vogais por maioria qualificada na Assembleia da República, após audição prévia. É já tempo também de se proceder a uma avaliação pública dos resultados deste instrumento de qualificação da administração central do Estado, após oito anos do seu lançamento.

Conclusão: As propostas eleitorais apresentam abordagens muito assimétricas e pouco incisivas quanto aos resultados esperados. São frouxas no foco em governar, e omissas quanto a questões especialmente críticas, tais como: avaliação de resultados das políticas públicas e governança dos sistemas de informação do Estado.

Há, contudo, que votar.

Independentemente de quem venha a ganhar as eleições e como, há seguramente muito campo de intervenção a preencher com iniciativa cívica, para exigir medidas que rompam com os círculos viciosos instalados no exercício do poder executivo, e que contribuam assim para alcançar padrões de desempenho compatíveis com as nossas legítimas ambições.

 

José Maria Sousa Rego assina este texto na qualidade de Autor do ensaio “No Centro do Poder” (2018), publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos