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Comércio justo: Quando os rótulos servem para denunciar injustiças do mercado

O desrespeito pelos direitos humanos e pelo ambiente levou à criaçãodo conceitode comércio justo. A adesão é escassa em Portugal, mas o movimento tem procurado estender-se aos produtores locais, mantendo-se afastado da lógica seguida pelos supermercados.
25 Maio 2019, 11h00

Poderá uma camisola que não foi feita por trabalho escravo parecer-lhe mais bonita? E um pedaço de chocolate será mais apetitoso se souber que não está a comprometer a sustentabilidade do ambiente? As preocupações com o impacto social e ambiental do comércio têm conduzido a um aumento da procura de alternativas mais sustentáveis e equitativas. As Lojas do Mundo, onde os consumidores pagam um preço justo aos produtores, começaram a espalhar-se um pouco por todo o globo, mas em Portugal continuam a representar apenas “uma gota no oceano”.

Foram as injustiças do comércio mundial que levaram ao aparecimento, na década de 1960, do conceito de comércio justo, cujo dia mundial é assinalado amanhã. O movimento, que rebentou na Holanda depois de experiências similares nos Estados Unidos, baseia-se na denúncia dos desequilíbrios comerciais e na consciencialização dos consumidores para a necessidade de pagar devidamente o trabalho dos produtores de matérias-primas. Ao comprarem produtos no comércio justo, os consumidores estão a levar para casa artigos que, teoricamente, não foram feitos com trabalho escravo ou infantil e em que todo o processo, desde o fabrico à entrega, obedece aos valores democráticos e ao respeito pelos direitos humanos. A estas preocupações acresce outra: a dimensão ambiental. Estes produtos são feitos com recurso a matérias-primas exploradas de forma sustentável e produtos biológicos, reciclados ou biodegradáveis.

O movimento chegou a Portugal pela mão do Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral (CIDAC). Ao Jornal Económico, Stéphane Laurent, do CIDAC, explica que a organização foi fundada em 1974 por cidadãos que lutavam na clandestinidade pela liberdade e justiça no tempo da Guerra Colonial. Na década de 1990, o CIDAC adotou um conceito que estava então em voga e que criticava a sociedade de consumo: o comércio justo. “Este movimento é uma alternativa ao comércio internacional que visa a promoção da dignidade humana, da justiça social e do ambiente. Temos como objetivo promover relações comerciais mais justas, sobretudo, no que diz respeito às atividades agrícolas, alimentares e artesanais, que são atualmente as mais vulneráveis”, explica.

“No comércio justo, procuramos mostrar que as escolhas do consumidor têm impacto sob quem as produz. Queremos incentivar atos mais conscientes e sensibilizar a opinião pública para a promoção de relações comerciais mais justas e sustentáveis”, explica Stéphane Laurent. “Nas Lojas do Mundo, o preço dos produtos deve ser justo e não vantajoso para as grandes cadeias de supermercados e deve procurar manter relações de longo prazo com os produtores”.

Entre os produtos mais comercializados no comércio justo encontram-se bananas, cacau, café, arroz, açúcar e o chá. Na loja de comércio justo do CIDAC, situada na rua Tomás Ribeiro, bem no centro de Lisboa, um pacote de 500 gramas de açúcar de cana mascavado do Brasil, por exemplo, tem um custo de 3,09 euros. Ainda que o preço seja substanciamente superior ao praticado no mercado convencional – um pacote de açúcar mascavado com a mesma quantidade custa, em média, 1,50 euros nas grandes cadeias de supermercados –, o CIDAC e a certificação dos artigos lembram aos consumidores que estão a contribuir para a promoção dos princípios de justiça, equidade e solidariedade.

“O açúcar de cana mascavado, com uma tonalidade dourada, é obtido através da purificação, evaporação e concentração, por meio da utilização de calor, do caldo de cana, sem qualquer processo químico”, lê-se no folheto de apresentação do produto, onde é garantida ainda “uma vida digna para as pessoas, a produção sã de alimentos e o respeito pelo meio ambiente”. “São utilizadas apenas técnicas agro-ecológicas, preservando e recuperando campos danificados por anteriores práticas de monocultura”, acrescenta.

Stéphane Laurent nota que, numa cadeia de mercado justo, ao contrário do que acontece no sistema convencional, as receitas finais são divididas em partes idênticas pelas entidades que participam no processo que conduz à venda. Enquanto no mercado convencional, o lucro acaba por ficar, em grande parte, para as entidades intermediárias entre o produtor e o consumidor, neste mercado alternativo são as próprias organizações não governamentais para o desenvolvimento a fazer esse papel – neste caso, a CIDAC, em parceria com cooperativas internacionais. Assim, existem apenas três entidades envolvidas: o produtor, o importador e o vendedor final. O preço final dos produtos inclui ainda um preço mínimo, assegurando o pagamento devido aos produtores, que acabam por ser os mais lesados no mercado.

Valorização do selo português

Numa lógica de “pessoas acima do lucro”, as instituições de comércio justo orientaram a criação de oportunidades de mercado para produtores economicamente desfavorecidos, sobretudo do Hemisfério Sul. Os designados países de Terceiro Mundo são aqueles onde a proteção dos direitos humanos e a promoção de técnicas de produção amigas do ambiente estão mais ameaçadas e menos enraizadas, pelo que a certificação dos produtos, e o seu escoamento no comércio justo, é entendida como uma mais-valia para a mitigação destes problemas.

No entanto, nos últimos anos esta dinâmica das exportações de Sul para Norte tem vindo a ser reorientada. No caso português, o CIDAC tem vindo a apostar cada vez mais na promoção de produtos nacionais e locais.  “Não são apenas os produtores da Ásia, América Latina e África que sofrem com as injustiça do comércio mundial. Na Europa, também a agricultura familiar e cooperativa enfrenta dificuldades e deve ser valorizada”. Neste sentido, o CIDAC tem reforçado o apoio aos produtos artesanais feitos em Portugal. Exemplo disso, é a venda, na loja de comércio justo do CIDAC, em Lisboa, de mel feito por apicultores locais em São Pedro do Sul, azeite alentejano, bolachas feitas por uma associação de deficientes de Seia e brinquedos e bijuteria da região do Algarve; todos estes produtos de acordo com os princípios do comércio justo.

A par da promoção de produtos nacionais está também a divulgação de artigos vindos de países de língua portuguesa. Stéphane Laurent conta que, nos últimos quinze anos, o CIDAC intensificou os contactos com Guiné-Bissau e Timor-Leste e, em novembro, fez a primeira importação direta de textéis timorenses. O CIDAC prevê, em finais de junho, repetir o feito com a Guiné-Bissau no que toca à arte de tecer. A organização está a estabelecer uma parceria com produtores da região de Biombo, na Guiné-Bissau, que colocaram mulheres a fazer uma arte tradicionalmente reservada a homens e em que os direitos humanos e o respeito pelo meio ambiente estão salvaguardados.

Das 323 empresas e instituições que integram a Organização Mundial do Comércio Justo (WFTO, na sigla em inglês), 236 estão situadas em países em desenvolvimento. A Índia é o país com mais empresas que se dedicam a esta forma de comércio alternativo, com um total de 48. Seguem-se a Holanda (20), Quénia (19) e o Bangladesh (18). Os Estados Unidos são o principal destino dos produtos comercializados no comércio justo, com um total de 168 empresas a exportarem para lá produtos certificados. Alemanha (133) e Reino Unido completam o pódio dos destinos preferenciais destes produtos.

Perda da filosofia original

A necessidade de escoar os produtos no mercado, aliada à (ainda) baixa procura por este tipo de artigos, levou à criação de critérios mais flexíveis ao nível da certificação. Ao contrário do que acontecia antes, para obter certificação de um produto no comércio justo basta que um dos ingredientes que o constituem obedeça aos princípios deste movimento. Isso significa que, na prática, uma camisola com 10% de algodão pode ser certificada, se apenas o aldogão necessário para a produzir cumprir os requisitos exigidos. No entanto, os restantes 90% de material que constituem o artigo podem não ser completamente justos e sustentáveis, na lógica original do comércio justo.

“A certificação por ingrediente pode ser o início do fim da credibilidade do comércio justo”, lamenta Stéphane Laurent. “Na filosofia do comércio justo é pedido ‘tanto quanto possível’ para que os produtos incorporem o máximo de ingredientes produzidos de forma justa e ambientalmente saudável, mas esta regra está a ser quebrada. Temos assistido a uma evolução gradual dos sistemas de modo a satisfazer as exigências e necessidades da grande distribuição, o que tem levado a uma perda do conceito original”.

O comércio justo atingiu o auge em 2006, altura em que havia em Portugal 12 organizações ativas na promoção de trocas comerciais mais justas e sustentáveis. Atualmente, além da loja de comércio justo do CIDAC, em Lisboa, existem apenas outras duas: a Diálogo Acontece, no Porto, e uma loja de alunos da escola de Ensino Secundário Gomes Ferreira, em Lisboa. Em termos de vendas, Stéphane Laurent, assegura que também já tiveram melhores dias. Em média, por ano, a loja do comércio justo do CIDAC faz 35 mil euros em vendas. A associação explica a queda com a baixa adesão em Portugal ao movimento e a entrada de produtos biológicos e rotulados como comércio justo nas grandes superfícies comerciais.

No entanto, Stéphane Laurent destaca que, de acordo com um estudo realizado em 2017 pelo CIDAC, em parceria com a Universidade Católica, 96% dos portugueses já ouviram falar do comércio justo e 65% dos inquiridos afirmam ter um bom conhecimento sobre os princípios que estão por detrás deste conceito. O estudo revelou ainda que 93% dos portugueses já compraram, pelo menos uma vez, produtos certificados de comércio justo. “Atualmente, o comércio justo representa apenas uma gota no oceano, mas resultados são animadores e colocam o nível de reconhecimento do comércio justo ao nível do que existe em França e na Bélgica, afirma Stéphane Laurent.

Artigo publicado na edição nº1988, de 10 de maio do Jornal Económico

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