Quase três anos passados na escrita e reflexão sobre cripto-temas, chegou a altura de antever a evolução do ordenamento jurídico que vai dar corpo à 4ª Revolução industrial, pois, afinal, tudo é direito. De referir que, não sendo jurista, corro imensos erros, mas não é por isso que vou deixar de contribuir para a discussão.

Este artigo é uma introdução ao tema em epígrafe, abrindo caminho à explicação da solução nos quatro artigos seguintes.

aqui falámos da Res Digitales, uma forma não-centralizada de vir a gerir o direito de propriedade. A tecnologia DLT (e.g., a Blockchain) tem vindo a ser paulatinamente adoptada pela generalidade dos ordenamentos jurídicos, e a solução por todos encontrada, tem sido invariavelmente a da responsabilização do cumprimento do direito por parte de um guardião (em inglês, custodian). Por exemplo, na União Europeia (UE) é assim que o regulamento MiCA dará valor legal a activos digitais não cobertos pelo MiFID II, e o Pilot DLT à tokenização de acções, obrigações e um tipo de fundos (estes últimos já pertencentes ao MiFID II).

Nos EUA, o reconhecimento das reservas de valor em criptoactivos também tem passado pelo licenciamento de fornecedores dos respectivos serviços, chegando ao ponto de se emitirem licenças bancárias para empresas especializadas em criptoactivos. E tem sido assim em todo o lado.

Também já aqui foi discutido que centralização da referida responsabilidade num guardião transforma o direito desmaterializado na Res Incorporales, muito longe, portanto, de poder aproveitar as propriedades de auto-execução da Blockchain para dar vida própria às regras direito. Para que a Res Digitales se torne um dia realidade, é preciso que os Smart Contract adquiram valor legal por si próprios e sem centralização alguma.

De referir que a proposta patente neste conjunto de cinco artigos não é uma crítica às soluções centralizadas que têm sido adoptadas, porque a custódia da informação e dos direitos como solução para permitir o processamento das transacções nas DLT não apareceu por acaso. É que tem sido esta a forma como os Estados de direito a aprenderam a dar valor jurídico à informação desmaterializada nos sistemas de computadores anteriores à auto-execução ecossistémica das DLT, sendo, portanto, essa a natureza dos ordenamentos jurídicos actuais.

Com esta abordagem de continuidade, têm-se minimizado as alterações aos referidos ordenamentos jurídicos, onde o da Suíça será provavelmente o mais eficaz de todos (à excepção da China) devido ao DLT Act, uma lei essencialmente agnóstica em relação a tecnologia. É que, na Suíça, esta lei já abarca a totalidade dos produtos financeiros, o que está ainda muito de longe de vir a acontecer sequer a médio prazo na UE. Não deixa, porém, de ser uma solução centralizada.

Então, o que precisa de evoluir na arquitectura de Smart Contract e nos ordenamentos jurídicos para tornar a Res Digitales uma realidade?

Este é um tema com imensos detalhes impossível de explicar num simples artigo ou ensaio. Resisti à tentação de publicar esta contribuição original, discutível e polémica numa daquelas revistas científicas cheias de si, pois desafio é precisamente conseguir explicar os novos conceitos em primeira mão, e da forma mais simples possível.

Depois de ter levantado o problema, termino este artigo de enquadramento com os temas que vou abordar nos próximos artigos, cada um deles dedicado a resolver um problema específico, e com o objectivo de propor uma solução completa para a Res Digitales.

Assim, o próximo artigo explica os token certificados, um elemento crítico para a criação de uma arquitectura não custodial (i.e., não-centralizada) para a execução dos Smart Legal Contract. Nesse artigo, vão ser discutidos exemplos de token certificados, na forma de token dinâmicos, para resolver, por exemplo, o problema da identificação jurídica.

No artigo seguinte, vamos estender a utilização dos token certificados aos outros elementos necessários à elaboração de contratos jurídicos passíveis de serem explicitados em código informático.

No quarto artigo da série, vamos discutir a problemática do consentimento e da reversibilidade dos Smart Legal Contracts, factores essenciais no Estado de direito. Finalmente, no quinto e último artigo, vamos focar a certificação do processamento, pois é o que falta para dar valor jurídico ao código informático não-custodial.

E pronto, com este conjunto de ideias, só faltará discutir e deitar mãos à obra (isto se se vier a constatar que tenho razão).

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.