Há coisas que fazem revolver as tripas, sem ser comida estragada. No “Público” de 02MAI20, vem publicada a Opinião de um conjunto de ilustres personalidades: “Sem os idosos não há futuro”. Acoberta-se, assim, uma hipocrisia imensa, tão vasta como as últimas décadas de neoliberalismo galopante e militante.

Subscrevem a dita Opinião, para lá de cidadãos respeitáveis, outros com responsabilidades directas e indirectas em todas as situações e problemas sofridos pelos idosos no contexto da pandemia. De facto, inaceitáveis.

Mas ver gente como Romano Prodi, Felipe González, Hans Gert Pöttering e outros, lamentar, choramingar pela situação dos idosos – arrepiados pelo “número dramático de mortes nos lares”, “preocupados com as tristes histórias dos massacres de idosos nos lares” –, advogar a necessidade de superar a “institucionalização” e exigir a revisão dos “sistemas públicos de saúde” para impedir o surgimento de “um modelo perigoso que favorece um «serviço de saúde selectivo», que considera a vida do idoso como residual”, e etc. – daria uma enorme vontade de rir se não fosse tão horrorosamente lamentável.

Não é que os responsáveis pelos baixos salários e pensões de reforma, colocando no limiar da pobreza e da sobrevivência milhões de habitantes da população europeia, e por políticas de urbanismo e habitação subordinadas à especulação imobiliária e financeira, impedindo que milhares de famílias tenham os rendimentos e a casa com condições para albergar e cuidar dos seus ascendentes, “choram” pela “institucionalização”?

Não é que os responsáveis por políticas sociais de orçamentos mínimos, e que promoveram (e promovem) a privatização, tanto quanto possível, de funções sociais dos Estados a favor do capital privado e de instituições ligadas às cadeias de caridade assistencial das igrejas, ou seja, de lares que são na sua maior parte “armazéns de idosos”, “choram” pelas coisas horríveis que aconteceram nos lares com a pandemia?

Não é que os responsáveis pela mercantilização da saúde, pelas restrições financeiras dos serviços públicos de saúde, como o SNS, pela privatização realizada (e em curso) de áreas completas de serviços médicos e hospitalares – ver a ofensiva do grande capital em Portugal – “choram” pela adopção (inaceitável, ilegal e imoral) de critérios de valorização mercantil dos utentes e hierarquização correspondente no acesso aos tratamentos?

Não é que os responsáveis pela troika que cá chegou – e todas as outras troikas, os responsáveis pelos Pacto de Estabilidade, Pacto Orçamental, Tratados de Maastricht e de Lisboa, pelo euro e seus dogmas monetaristas e neoliberais, pelos seus mandamentos do défice e da dívida pública, responsáveis pela desvalorização salarial, pelo congelamento das reformas, por políticas sociais anémicas e estrangulamento dos serviços públicos de saúde, acabam a chorar lágrimas de crocodilo pelos velhinhos?! É demais.

Idoso que sou quero declarar repugnante, não a Opinião, mas a lata política de alguns dos que a assinam. Mas se insistirem em publicitá-la, juntem à subscrição, pelo menos, os nomes de Blair, Merkel, Delors e outros franceses e alemães e de outras nacionalidades… e, já agora, de uma lista imensa: Cavaco Silva, Guterres, Durão, Portas e sucessores.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.