Quando no início dos anos 80 do século passado comecei a trabalhar na RTP, o então Diretor Técnico da empresa desabafou que era muito difícil conseguir que os seus técnicos fizessem manutenção regular aos equipamentos, pelo que de vez enquanto alguma coisa avariava. E entrava-se em reparação urgente. Os técnicos poderiam passar noites sem dormir para conseguirem ter o equipamento pronto a tempo do programa ou emissão para que seria preciso.

Esta conversa fez-me então descobrir a aversão de muitos portugueses à prevenção de rotina, e provavelmente à rotina em geral. E, que tudo o que bem ou mal se considere que pode ser adiado sem consequências pessoais, é adiado.

Décadas mais tarde, há apenas algumas semanas deparei-me no aeroporto de Lisboa com uma multidão em passo lento e estancado para sair da área das bagagens do aeroporto e depois igual multidão para apanhar táxi. Sendo uma anormalidade, é uma ocorrência normal. Quando finalmente me instalei no táxi e desabafei ao motorista sobre aquela situação caótica, ele respondeu que as coisas ali só funcionam bem com há jornadas mundiais da juventude, no plural, para significar grandes eventos.

A filosofia taxista confirmou em mim a velha ideia que os portugueses só funcionam bem em situações excecionais que resultam da confluência de vários fatores que em traços gerais conformam o que se designa por projeto mas que também poderei designar por evento.

Muitas empresas funcionam lançando sucessivos projetos de inovação tecnológica, ou comercial, ou de processos. Não apenas por pressão competitiva, ou para ultrapassar a obsolescência da oferta, mas também porque são um meio de gestão mobilizador de equipas, muitas vezes transversais e demolidor de silos e que têm como objetivo obter ganhos de eficiência ou outros.

Fiz um exercício de memória em que procurei identificar os fatores que caracterizam os projetos que mobilizam os portugueses e em que estes revelam ser tão bons como quaisquer outros. O problema é que há poucos desses projetos e são espaçados no tempo. Não há uma continuidade que permita reproduzir rapidamente com vantagem o conhecimento adquirido, o entrosamento de equipas, os processos desenvolvidos, os recursos mobilizados.

O problema da descontinuidade de equipas que, em certo momento colaboraram num projeto desenvolvendo capital social e intelectual, mas que são desmobilizadas após a sua conclusão, afeta, por exemplo, a produção cinematográfica na Europa. Cada novo projeto é um protótipo.

Os projetos de sucesso que me ocorrem decorreram em variadas áreas, designadamente, administração pública; cultura; obras públicas; desporto; religião; economia; comunicações; solidariedade social. Estes projetos são sustentados em expressivo capital social, ou seja, incutem confiança através da transparência de objetivos, de execução, de leaders, de principais atores. Para que a confiança seja total deverá haver prestação de contas (accountability) mas não posso aqui afirmar que tenha havido em qualquer dos casos, o que, a não ter ocorrido, se reflete negativamente na construção de próximos projetos. Apesar do sucesso, podem ter deixado um rasto nefário.

Ocorrem-me os seguintes exemplos de projetos pós-25 de Abril que mobilizaram grupos de inovadores e early adopters, que foram adotados pelos fazedores de opinião pública, transformando-se em movimento de grandes grupos sociais, ou que simbolizaram o interesse e/ou a vontade de importantes grupos sociais, profissionais ou, em alguns casos, de vontade coletiva nacional.

Refiro-me à TV via satélite que resultou na TV por cabo (1985) e na televisão privada (1991); Adesão à CEE (1986); IVA (1986); Banco Alimentar Contra a Fome (1991); ligação à Internet (FCCN, 1991); TV privada (1991); Pay-TV (1992); Centro Cultural de Belém (1992); Presidência do Conselho Europeu (1992, 2000, 2007); Capital Europeia da Cultura (1994, 2027); Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT, 1997); Expo 98; Lojas do Cidadão (1999); Escudo para o Euro (2002); UEFA Euro 2004; Casa da Música (2005); Cartão de Cidadão (2007); Troika (“o bom aluno”, 2011-2015); campanha do Museu Nacional de Arte Antiga “Vamos Por o Sequeira no Lugar certo” (2019) que foi o objeto da minha tese de doutoramento; digitalização dos processos fiscais e judiciais (2019); vacinação Covid (2021-22); Jornadas Mundiais da Juventude (2023) e outras visitas papais (1982, 1991, 2000, 2010). Outros haverá.

Atrevo-me a elencar as seguintes características destes movimentos.

  • São percebidos, muitas vezes consensualmente, como de interesse nacional, gerando momentaneamente forte e extenso capital social.
  • O objetivo, as vantagens coletivas são conhecidas e entendidas por parte ou grande parte da sociedade, em particular e fundamentalmente pelos seus atores e pelos fazedores de opinião pública.
  • Quando os projetos responderam à execução de políticas, evento ou obras com projeção ou enquadramento internacional obtiveram o máximo de resposta profissional por parte dos seus atores e o maior sucesso. A ideia de que “os olhos do mundo” estão sobre nós tem um forte impacto mobilizador confirmando que tem alguma tradução na realidade portuguesa a síndrome inventada pelos brasileiros conhecida como “para inglês ver” (leis supostamente abolindo a escravatura) e conhecido na Ucrânia e Rússia como a “aldeia de Potemkin” (aldeias falsas para agradar a Catarina a Grande no seu périplo pela Crimeia quando da primeira anexação, na verdade um mito totalmente inventado). Quando os projetos se restringem ao palco nacional, o sucesso não é garantido.
  • O projeto tem de ser percebido como uma coisa concreta, com efeito social positivo.
  • Com princípio e fim, data limite de execução não prorrogável sob pena de falhanço escandaloso ou de consequências irremediáveis.
  • Com sentido de urgência (noites sem dormir são mobilizadoras).
  • Transversal à sociedade, mobilizando diversos estratos sociais e profissionais, desde especialistas em tecnologias, indústrias criativas, departamentos do Estado, agentes económicos.
  • Acontecimento “one-off”, com bom planeamento e organização, mas limitado no tempo, ou seja, não rotineiro.
  • Recompensa emocional de um trabalho bem efeito dentro dos prazos é para muitos recompensa suficiente.

Haverá com certeza mais fatores e seria uma interessante e útil área de estudo conhecer bem o que faz e o que não faz mover os portugueses. Como é sabido, não é apenas o dinheiro que anima as pessoas a dar o seu melhor.

O meu entendimento é que os portugueses só se sentem motivados por projetos eventuais, concretos, delimitados no tempo, exigindo um esforço fora do ordinário e da rotina, e muito em particular pelos projetos que têm exposição internacional.

Transpondo para a política, a minha conclusão é que neste momento da vida nacional, qualquer programa político para ser vencedor tem de apresentar-se aos portugueses não apenas como um projeto, uma visão para o queremos ser no médio prazo, mas sim como uma sucessão de projetos de expressão internacional e de cuja execução dentro de prazos rígidos depende o progresso dos portugueses.

O sucesso do projeto Portugal tem de resultar de uma sucessão de projetos “para inglês ver”.