“A nossa Casa é sobre mistério, nenhuma outra marca de luxo possui uma mística tão forte assente na qualidade, valor chave da nossa fundação, e no vínculo emocional: na Hermès, criamos desejo”, Alex Dumas, Presidente e CEO da Hermès

O ataque do lobo em pele de cordeiro

Em outubro de 2010, o CEO da Hermès, Patrick Thomas, pedalava calmamente pelos Alpes franceses quando o seu telefone toca. Patrick pára, atende e reconhce a voz de Bernard Arnault. Ele mesmo, o dono da LVMH, o maior predador do mundo da moda a nível mundial, famoso por décadas de aquisição de mais de 70 grandes marcas de luxo – sem nunca ter falhado uma operação. Mas a sua paixão sempre foi ser dono da Hermès e estava a atacar.  Arnaut foi breve – alertou Thomas que a LVMH já controlava 17% da Hermès e que ia aproveitar possíveis brechas nos ramos da família acionista que lhe pudessem dar o controlo da empresa. Thomas terá ficado tão furioso que a sua resposta a Bernard Arnaut ficou famosa: “Se você quer seduzir uma mulher bonita, você não começa por a violentar por trás”.

O que se passou a seguir fez história e constitui uma das maiores demonstrações públicas de união férrea no seio de uma grande Família com seis gerações e 100 acionistas que foram reforçando os valores de uma marca que se tornou icónica. Normalmente, conflitos familiares no seio de uma Família tão alargada seguiria o dramático caminho da família Gucci ou de tantas outras.  Mas assim não foi e para entender o que se veio a passar a seguir é preciso recuar no tempo à fundação da Família e entender a força do legado da dinastia que deu à luz uma marca incomparável.

Hermès, a empresa e a Família: uma história perfeita de tenacidade e consistência

Fundada por Thierry Hermès, a empresa nasce em Paris em 1837 focada em artigos de couro de alta qualidade para o comércio de carruagens. Altamente refinada, a marca Hermès conquista uma reputação única graças à formação e retenção de talentosos artesãos de couro – um atributo que a empresa nunca deixou de acarinhar.  Em 1880 o seu filho Charles-Émile assume a liderança e muda a loja para o nº 24, rue du Faubourg Saint-Honoré, ainda hoje um ícone da marca. A Casa serve já grandes figuras como o Imperador Nicolau da Rússia e chega a empregar mais de 80 artesãos. Viajamos até à década de 1920 para ver o neto Émile-Maurice introduzir acessórios e coleções de roupas refinadas. Sem filhos, coloca  os seus três genros Robert Dumas, Jean-René Guerrand e Francis Puech em posições de gestão criando opções para a sua sucessão. Robert Dumas seria o escolhido.

O grande salto da Hermès dá-se em 1922, quando a mulher de Émile-Maurice se queixa de que não consegue encontrar nenhuma carteira no mercado a seu gosto. Émile-Maurice agarra a oportunidade e cria a primeira linha de carteiras de senhora Hermès – um passo absolutamente lógico, mas que nunca tinha sido dado.

De 1924 aos nossos dias a Casa vive um conto de fadas feito de originalidade, bom gosto, intemporalidade e uma qualidade de fabrico inigualável. Robert Dumas sucede a Émile-Maurice e cria a linha de lenços de seda, um sucesso imediato. Em 1978, Jean-Louis Dumas, filho de Robert e membro da quinta geração, assume a liderança expandindo a presença geográfica, introduzindo perfumaria e loiça e aproxima a marca do público mais jovem. As vendas crescem dez vezes em doze anos apenas. Em 2006, a empresa passa pela liderança de um gestor externo à família, Patrick Thomas (o tal que gostava de passear de bicicleta nos Alpes) e hoje Axel Dumas, sobrinho de Jean-Louis e membro da sexta geração, preside à empresa. A Família é composta pelos três ramos Puech,DumaseGuerrands que controlaumaparticipaçãode70%.

O papel da Família na explosão da marca Hermès

Ao longo de mais de um século e de seis gerações, a Família dedicou-se à empresa com vigor mantendo sempre a ligação aos valores das raízes do fundador e uma notável consistência de presença de mercado sempre sob uma única marca. A presença do Fundador está bem viva na empresa – o artesanato (emprega hoje quase três mil artesãos), a distinção e a exclusividade vêm intocados do seu legado têm sido sem dúvida o grande aglutinador da Família. Atributos distintivos e sólidos que cada geração venerou e sempre procurou fortalecer.

De facto, a unidade da Família e o bem-estar dos seus membros sempre esteve no centro da história da Hermès. A própria abertura do capital em Bolsa em 1993 foi pensada para que a transparência do valor e a facilidade na transferência de ações diminuísse futuras tensões. Mas há sempre uma ovelha negra e na Família Hermès chama-se Nicholas Puech. Sem filhos, faz questão de adotar o seu jardineiro marroquino e deixar-lhe o seu património. Mas o edifício societário da Família é um obstáculo intransponível e Nicholas vira-se em tribunal contra o gestor do património da Família, perdendo a toda a linha sem reversão. De então para cá limita-se a fazer o deleite da imprensa, encantada com um bizarro Hermès. 

O regresso de Patrick Thomas depois da conversa com Bernard Arnault nos Alpes

E o que se passou em 2010 quando Patrick Thomas volta furioso do passeio de bicicleta alpino? Seis anos de batalhas judiciais até que em 2014 a Autorite des Marchés Financiers reforça a proteção da Família Hermès ao decidir que a LVMH não podia comprar ações aos acionistas minoritários da Casa. A LVMH já tinha 21% das ações, mas a decisão eliminou qualquer hipótese para uma aquisição hostil. Em cima, Arnault é acusado de compra de ações sem divulgação ao mercado e desiste de toda a operação

E a Família garantiu que algo similar não pudesse voltar a acontecer. Monta uma série de sociedades gestoras de participações sociais e participações diretas e concentra nelas os 65,1% do capital e os 74,8% de direitos de voto detidos pela família. A venda de ações é regulada internamente pelas estruturas de topo e por isso esta medida, para além de blindar o controlo da empresa, foi mais uma expressão vigorosa da união da família.

Entretanto, a Hermàs não para de se valorizar. Em abril deste ano a empresa ultrapassou o grupo LVMH em valor de mercado (€249bio vs. €244 bio), um feito notável para uma empresa monomarca face ao maior império de marcas de luxo do mundo. Uma empresa que não mostra quaisquer sinais de alguma vez deixar de ser um império familiar.

O que pode uma empresa familiar retirar desta história?

No mínimo, três grandes lições:

  • Os atributos distintivos do legado do Fundador reforçados geração a geração
  • A capacidade de identificar em cada geração o sucessor mais talentoso e prepará-lo para fazer crescer o valor e inovar preservando o legado
  • e a capacidade de preservar elos emocionais profundos de respeito, orgulho e valores partilhados no seio da Família que garantam uma união sólida entre todos os membros

Será um caso assim tão particular ? Claro que não. Nos seus fundamentos, a Hermés não é senão uma aplicação dos princípios de desenvolvimento virtuoso que qualquer empresa familiar e (como se diz hoje) família empresarial bem conhece e pode implementar. O posicionamento de exclusividade, o talento e o grau de disciplina podem ser difíceis de emular… mas o caso da Hermès pode e deve ser uma inspiração para que as grandes e médias famílias empresariais se lancem com arrojo para o estatuto que seguramente merecem.