Pedro Santana Lopes citou José Ortega y Gasset (1883-1955) no discurso de lançamento da sua candidatura à liderança do PSD – “cada um é ele próprio e as suas circunstâncias” – quando se referiu a si mesmo pelo nome completo, querendo por certo significar o primado do indivíduo e afirmar a assunção da sua responsabilidade individual pelos atos que praticou ao longo da vida.

Ortega y Gasset propôs que a filosofia deve superar as limitações do idealismo em que a realidade se centra à volta do ego, e do realismo medieval em que a realidade reside fora do sujeito. Deste modo, não haverá “eu”, ser humano, sem as coisas e as coisas não podem ser desligadas da “minha circunstância”: “Yo soy yo y mi circunstancia”, a famosa máxima que está no centro da sua filosofia. Todavia, a circunstância é opressiva, pelo que há uma contínua interação dialética entre a pessoa e a sua circunstância – a vida é um drama que existe entre a necessidade e a liberdade.

A obra e o pensamento de Ortega y Gasset, e o lugar que ocupa na reflexão filosófica da primeira metade do século XX, têm vindo a suscitar renovado interesse, desde logo no contexto da massificação da opinião em resultado das tecnologias digitais. Em Portugal como no Brasil este interesse está expresso no número e na qualidade de estudos que, em ambos os países, lhe foram dedicados nos últimos anos. Oportunamente, em novembro, tem lugar em Lisboa o Congresso Internacional Presença de Ortega y Gasset em Portugal e no Brasil, organizado pelo Instituto Cervantes e pelo Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, em associação com a Fundação Ortega y Gasset. O evento tem como foco a presença do pensador madrileno na cultura filosófica de língua portuguesa.

Ortega y Gasset, filósofo, jornalista e ensaísta espanhol, saiu de Espanha para França, Argentina e Portugal quando estalou a Guerra Civil. Tal como o cineasta Luís Buñuel, sobre quem foi uma influência e que se exilou no México, afastou-se da política. O seu silêncio apolítico é ainda hoje criticado. Todavia, a obra de Ortega y Gasset centra-se na defesa do liberalismo, nos direitos dos indivíduos e das minorias, na importância de indivíduos tolerantes e não de massas homogéneas e medíocres. Ao referir os avanços e progressos do século XX, Ortega y Gasset defendeu que, se por ventura alguma coisa de superior vier a ser desenvolvida, esta será baseada em conhecimento técnico e na democracia liberal.

O discurso de Pedro Santana Lopes em Santarém revelou o substrato intelectual do seu pensamento político e é possível ver ali traços da filosofia de Ortega y Gasset. No passado domingo, tornou clara a sua convicção de que não há sociedade que progrida sem estar sempre a investigar, à procura de novo saber, e insistiu na permanente necessidade de inovar, de descobrir. Defendeu ainda prioridade absoluta à investigação científica, em novo saber e na ligação do PSD às universidades. Propôs a adequação do seu partido ao tempo em que vivemos, como porta-voz de novos talentos, investigadores, docentes, quadros.

Quando afirmou que o comunismo soviético estava destinado a ser um fracasso no Ocidente ou quando defendeu uma confederação para a Europa, predizendo o aparecimento da União Europeia, Ortega y Gasset foi profético. Não reconhecia a existência de uma “esquerda” ou “direita” no debate político, tal como hoje defende, entre outros, Emmanuel Macron, o presidente francês. Por seu lado, Pedro Santana Lopes afirmou: “Nós somos um partido que vai do centro-direita até ao centro-esquerda. Francisco Sá Carneiro e Cavaco Silva nunca andaram entretidos com dissertações sobre essa matéria e levaram-nos a vitórias muito importantes. Eu quero fazer o mesmo, não tenho complexos nessas matérias”. E propôs uma “alternativa sólida, reformista e renovadora”.

Ortega y Gasset defendia que aparecera um tipo de pessoa – fascistas e comunistas – que não se preocupa em dar razões ou até mesmo em ter razão, mas que simplesmente estava disposta a impor as suas opiniões. Era uma absoluta novidade: o direito a não estar certo, em não ser razoável: “a razão da não-razão”. Escreveu que “passou o tempo para ouvir e, pelo contrário, chegou tempo para julgar, para pronunciar sentença, para emitir proclamações”. A este propósito, Pedro Santana Lopes referiu aqueles que pretendem exercer uma ditadura em termos morais e éticos, referindo-se aos comunistas e à extrema-esquerda, e contrapôs que “afirmamos os nossos valores e princípios.”

Outra profecia de Ortega y Gasset diz respeito à relação entre novas tecnologias e essas novas atitudes “rudes”, o que ele chama de coexistência entre “o primitivismo e a tecnologia”. Ele entendeu, na sua obra mais conhecida, “A Revolta das Massas”, em 1929, que o aparecimento de novas ferramentas tecnológicas resulta na amplificação global de opiniões não-formadas de pessoas, que numa era precedente apenas poderiam estar focadas no que lhes era próximo e familiar – e que desdenham a ciência. Como escreveu Ted Gioia em “The Daily Beast”, Ortega y Gasset não poderia ter previsto a era digital, mas descreveu-a com precisão.

Utilizando uma expressão atual, o novo conflito será entre o conhecimento científico e o crowd sourcing de opinões não fundamentadas nem factuais, alimentadas por fake news propaladas em parte por atores políticos dissimulados. Vem à memória a colagem emotiva de massas ignorantes às falsidades espalhadas online com apuradas técnicas de micro-targeting pelos partidários do Brexit e por Trump. Anteontem, Michael Bloomberg disse (na inauguração da espetacular nova sede da Bloomberg em Londres desenhada por Norman Foster), que o Brexit foi a “coisa mais estúpida que algum país jamais fez, mas a seguir we [os americanos] Trumped it”.

O homem-massificado (mass-man na tradução inglesa) pode ser de qualquer origem social. Se forem forçadas a escolher entre o conselho do sábio e opiniões vagas de outras pessoas, as massas voltam-se invariavelmente para as opiniões estridentes das últimas, diz Ortega y Gasset. As pessoas a quem chama de “elite superior” poderão tentar pronunciar algumas opiniões e dirigir, mas cada vez são menos os que em baixo lhes prestam atenção.

Ortega y Gasset defende que o novo conflito não é entre classes hierarquicamente superiores e classes inferiores, porque um milionário pode ser um membro das massas e um pobre pode representar a elite. O conflito é entre elites. Neste contexto, Pedro Santana Lopes denunciou, outra vez, as elites políticas portuguesas que trataram delas próprias e não trataram de Portugal e dos portugueses.

Em Portugal, o novo conflito foi posto a claro pelas catástrofes anunciadas de julho e outubro, que resultaram em perdas humanas, ambientais, sociais, emocionais, económicas – enormes prejuízos presentes e futuros, muitos irreparáveis. As catástrofes revelaram falta de aplicação, cumprimento e sancionamento da lei, proteção, organização, competência, comunicação e educação das populações pelo Estado dito providente. Os danos reputacionais são gravíssimos para Portugal e chegaram longe. A nuvem de fumo dos incêndios toldou o sol em Estocolmo, a 3.500 quilómetros de distância. As autoridades suecas foram obrigadas a sossegar as populações.

O novo conflito coloca, de um lado, arautos de falácias, superstições e mitos de todos os tipos, estatistas, funcionalistas e clientelistas, e, de outro, os portugueses empreendedores, solidários, científicos, rurais, cosmopolitas, globalistas. Por um lado, imobilismo, dirigismo, desigualdades, pedantismos, culturas pseudomodernas, mediocridade. Por outro, democracia liberal, iniciativa privada, inovação e progresso político, científico, económico, social e cultural.