Assim, repetido três vezes, pode ser que chame a atenção. Em Portugal, a ciência não faz manchetes. Talvez seja expectável. Num país pequeno, com as dificuldades de desenvolvimento que conhecemos, talvez não seja surpreendente que as prioridades mais imediatas possam ser outras. Mas quais as verdadeiras consequências de não haver uma política científica estruturada, bem como um investimento consequente na ciência (e, acrescente-se, no cronicamente suborçamentado Ensino Superior)? Joana Gonçalves de Sá, num artigo muito elucidativo publicado recentemente no Público, resume o problema de forma lapidar: “outros países são mais desenvolvidos porque geram mais conhecimento e mais inovação (…) um país que abdique de fazer ciência abdica da sua autonomia e do seu papel no mundo”.

Vem isto a propósito do orçamento da FCT que foi anunciado no início deste mês e que, sabemos agora, sofreu um corte de 68 milhões, tornando-se no valor mais baixo desde 2018. Porque é que isto é importante? Porque, mais do que um retrocesso (apesar de claramente também o ser, como assinalou a última ministra do setor, Elvira Fortunato, em entrevista recente) acaba por ser a confirmação da incapacidade de verdadeiramente put your money where your mouth is, isto é, de ser consequente com o apoio nominal a algo que, em tese, ninguém deixa de apoiar – a aposta no conhecimento e na ciência, tão fundamentais para a desejada “modernização”.

Um problema crónico

Os problemas das Instituições de Ensino Superior e do Sistema Científico e Tecnológico Nacional como um todo, estão identificados há muito tempo. Passam, para mencionar apenas alguns dos mais importantes, pela suborçamentação do Ensino Superior, falta de estabilidade e previsibilidade dos concursos de apoio à investigação científica, dificuldade em renovar quadros nas Universidades e dar estabilidade à carreira de investigação, relação por vezes difícil entre a FCT e as Instituições de Ensino Superior, e, finalmente, escassíssimo financiamento. O livro recente O Futuro da Ciência e da Universidade, organizado por Maria de Lurdes Rodrigues e Jorge Rodrigues da Costa, traça bem esse retrato.

Esse livro mostra que a década marcada pela crise da dívida soberana foi uma década perdida para a ciência em Portugal. Estamos muitíssimo longe do alvo de 3% do PIB dedicado a I&D e longe da média da OCDE. Em 2021, dos 1,7% alocados a I&D apenas cerca de 0,7% era investimento público e desse, mais de metade tem sido financiamento de fundos comunitários. Nesse ano, mostra Maria de Lurdes Rodrigues (p. 71), os fundos nacionais de Orçamento de Estado para I&D estavam em níveis de 1991, ou seja, 0,32% (a média da OCDE estava em 0,74%). E quanto ao investimento do setor privado, a sua relevância levanta dúvidas já que praticamente não inclui despesa com doutorados, sendo estes, nessa data, apenas 5% dos Recursos Humanos declarados pelas empresas como estando afetos à investigação (p. 65). Como refere Carlos Fiolhais no prefácio a este livro, “algumas das empresas que dizem fazer a maior investigação afinal não têm doutorados, nem artigos, nem patentes…” (p. 17).

Ou seja, ainda há um longo caminho a percorrer para que o investimento privado em I&D signifique um verdadeiro contributo para o reforço da ciência e tecnologia em Portugal, bem como uma alteração significativa da economia portuguesa. Em suma, como refere Maria de Lurdes Rodrigues, falta compromisso com a ciência, e seria preciso renová-lo.

Não se acaba com a precariedade porque não se quer

No Fórum de Jovens Investigadores sobre “O Futuro das Humanidades”, que teve lugar em Maio de 2021 em Lisboa no contexto da Conferência Europeia das Humanidades, fórum que eu e quatro outros colegas portugueses (Ana Cristina Falcato, Leonor de Medeiros, Raimundo Henriques e Telmo Pereira) ajudámos a organizar, e que juntou dezenas de jovens investigadores europeus desta área, as principais preocupações mencionadas, e vertidas no relatório “Humanities for the Future”, ligavam-se a condicionamentos como acesso a financiamento, estabilidade na carreira e avaliação adequada.

Não se pode dizer que não se tenham dado passos para enfrentar esses problemas, em Portugal mas eles são claramente insuficientes. O Programa FCT-Tenure é um exemplo. A confirmarem-se os resultados provisórios divulgados em agosto (aguardam-se os definitivos) afirma-se uma tendência que aprofunda um problema. O problema já era conhecido: as 1100 vagas disponibilizadas são muitíssimo insuficientes para colmatar o número de investigadores prestes a entrar no desemprego. Arriscaria dizer que em muitos institutos do país o ambiente é de pré-calamidade, à medida que várias centenas de investigadores com provas dadas e vários anos de ligação às suas respetivas instituições veem comprometida a sua hipótese de continuar a fazer ciência.

A tendência, agora assinalada, é para o reforço das assimetrias. Cinco universidades obtiveram 90% das vagas nos resultados provisórios, com uma fortíssima concentração no litoral. Algumas áreas fundamentais (e porventura consideradas prioritárias) em algumas instituições não lhe viram ser atribuídas uma única vaga. A ser assim, a confirmar-se (e a manter-se) esta tendência, corremos o risco de criar um abismo entre as instituições cada vez mais “de investigação” (tendencialmente de elite) e as que permanecerão meramente “de ensino”, sem meios para verdadeiramente fazer investigação (uma americanização do nosso Ensino Superior, por assim dizer).

E não é que não pudessem ser concebidas alternativas, como, por exemplo, uma aposta de desenvolvimento e coesão territorial que tivesse verdadeiramente em conta a investigação e o Ensino Superior. Na verdade, o montante que seria necessário, em termos orçamentais, para dar às Instituições de Ensino Superior os meios para regularizar os vínculos dos seus precários é tão irrisório se comparado a outras despesas públicas, que só podemos assumir que é por falta de vontade política (e desvalorização, na prática, da ciência e do conhecimento), que não se faz.

Ciência, Humanidades, Ensino Superior: que futuro?

Nos meus textos neste espaço, tenho batido com frequência na tecla da importância das Humanidades, da interpretação, do conhecimento e do pensamento crítico para se combater a desinformação, fomentar a cidadania democrática, dialogar com quem não quer ouvir.

Para debater alguns destes temas, acolheremos na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra a Conferência A Racionalidade Hermenêutica e o Futuro das Humanidades, no âmbito da qual receberemos vários especialistas internacionais e organizaremos uma mesa redonda com Reitoras e membros de equipas reitorais para debater o futuro da Ciência e do Ensino Superior em Portugal.

Seria talvez preciso não só multiplicar estes debates como garantir que a mensagem passa para a sociedade e o poder político. Sem aposta verdadeira no conhecimento não sairemos da cepa torta… e talvez esteja na altura de reinventar o futuro.