No final do Inverno, o volume de reservas de gás natural existente em instalações de armazenagem nos Estados-membros da União Europeia era superior a 50% da capacidade total, quando em anos anteriores a quantidade comparável seria da ordem dos 20%. Os planos existentes permitem antever que será possível atingir o objectivo de 90% no início do próximo Inverno, mesmo considerando a redução das compras à Rússia.

É certo que uma parte deste resultado foi conseguido porque o clima foi mais suave do que o habitual para a época do ano. Mas há que reconhecer que as políticas de redução de consumos em cerca de 15% também tiveram um impacto positivo. E ficou igualmente patente que as iniciativas da União para procurar fornecedores alternativos foram bem-sucedidas, dado que a proporção de gás natural adquirido à Rússia baixou de mais de 50% em Janeiro de 2021, para cerca de 13% em Novembro de 2022.

Não foi fácil chegar a estes resultados. A forma preferencial de transporte de gás natural é por pipeline, o que restringe as opções relativas à origem àquelas regiões que podem fornecer dessa forma, por não obrigarem a longas travessias oceânicas. Foi essa a principal razão para que a Europa criasse a dependência do gás natural russo.

Contudo, é possível ultrapassar esse constrangimento físico através da importação de gás natural liquefeito, apesar de ser uma opção tecnologicamente exigente e mais cara. Por isso a construção de terminais de regaseificação que permitissem receber esse produto de outras origens, como o Qatar, a Nigéria ou os EUA nunca foi encarada como uma prioridade em termos económicos, embora do ponto de vista estratégico a fragilidade da situação fosse já bem conhecida.

Mas mais vale tarde do que nunca. A Europa iniciou um esforço para conseguir diversificar a origem do gás natural de que tem necessidade, num processo de busca agressiva de novos fornecedores e de investimentos para poder receber esses fornecimentos. Evidentemente que esse esforço provocou a subida dos preços do gás natural nos mercados internacionais, porque a concorrência aumentou.

Mas como a produção e o consumo mundiais de produtos energéticos são relativamente pouco elásticos, esse efeito tende a atenuar-se à medida que os mercados se reajustam e a Rússia encontra outros clientes, sobretudo a China e a Índia, cujas economias têm dimensão para absorver as quantidades em causa, substituindo os seus fornecedores tradicionais.

E aqui temos um outro fenómeno interessante. É que as circunstâncias criadas pela guerra na Ucrânia, que na Ásia, África e América Latina é encarada como um problema estritamente europeu (ou “ocidental”), estão a ser aproveitadas por um conjunto mais ou menos alargado de países para preparar uma alteração fundamental do quadro essencial que tem regulado a Ordem Mundial nas últimas décadas.

Numa perspectiva eurocêntrica, a absorção da Ucrânia pela Rússia é contrária aos interesses da Europa e, por arrastamento, da NATO e outros países que fazem parte deste bloco geoestratégico ou com ele estão alinhados, porque seria um primeiro passo num processo gradual de expansão russa. Daí que a Europa e os seus aliados tenham feito tudo o que está ao seu alcance para garantirem à Ucrânia os meios de que necessita para se defender da invasão – mas apenas isso, dado que é impensável que o Ocidente e a Rússia se envolvam num conflito militar directo.

Ora, isto tem duas consequências.

Por um lado, está a tornar-se claro que é essencial que a Europa reforce os seus quadros de cooperação e integração económica e política, apesar das pressões nacionalistas, porque isoladamente ou em grupos regionais estes países não terão condições para se manterem independentes a longo prazo. Mas não só. Considerando a experiência adquirida com a presidência de Donald Trump, e algumas declarações de responsáveis do Partido Republicano que parecem duvidar que a defesa da Ucrânia seja relevante para os interesses americanos, a confiança no firme apoio dos EUA está abalada, como foi reconhecido por Emmanuel Macron e Ursula von der Leyen.

Por outro lado, a China, a Índia e outros países, como o Brasil, estão a tentar aproveitar o momento para reafirmarem as suas pretensões a serem reconhecidos como decisores relevantes na cena internacional ao nível global. As afirmações do Presidente Lula da Silva, sobre as responsabilidades recíprocas da Rússia e dos EUA e a União Europeia na manutenção da situação na Ucrânia, bem como a postura do Presidente Xi Jinping relativamente à possibilidade de a China ser um mediador nesse conflito são, na minha opinião, manifestações dessas pretensões, e prenunciam o esboço de um novo quadro institucional das relações e segurança internacionais, numa versão multipolar que reflectirá este novo tipo de equilíbrio.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.