A compreensão dos presentes acontecimentos na Ucrânia deve passar por procurar perceber quem beneficia com uma guerra na Europa, tanto ponto de vista geoestratégico como geoeconómico. A Rússia tem sido apresentada pelo mainstream comunicacional como a grande perturbadora da paz no Velho Continente. A grande responsável pela tensão que se está presentemente a viver. Contudo, os motivos do envolvimento dos EUA e da Rússia naquela região devem merecer uma reflexão desapaixonada.
Parece razoável afirmar que os prejuízos de uma confrontação militar na Ucrânia para a Rússia superam largamente os benefícios. Salvaria da chacina a população russa ucraniana, mas pouco mais de positivo daí adviria. As consequências negativas desse ato seriam dramaticamente nefastas.
Fechar-se-ia a porta para a Rússia discutir com os seus parceiros europeus uma nova arquitetura de segurança na Europa, para além das sanções económicas que a colocaria de rastos, se o presidente Joe Biden concretizar a ameaça de excluir Moscovo do sistema SWIFT. Assim como perderia os fundos que lhe permitiram recuperar das sanções impostas em 2014. Internamente, a imagem de Putin seria seriamente afetada. Esta é uma guerra que a população russa não quer nem está preparada para abraçar.
Do ponto de vista geoestratégico e geoeconómico, Washington seria o grande beneficiado da ação militar russa. Teria um excelente pretexto para colocar Moscovo de rastos, privando-a das receitas da venda do gás e do petróleo à Europa, e para isolá-la internacionalmente, tornando-a um Estado pária.
A Alemanha também não seria poupada. A impossibilidade de aceder ao gás russo colocá-la-ia na dependência do gás de xisto americano, mais caro do que o russo, com repercussões dramáticas para a economia alemã e europeia. Washington vê o Nord Stream 2 como uma ameaça ao seu poder na Europa, como uma janela que se abre para relações promissoras da Europa com a Ásia.
O aprofundamento das relações entre a Alemanha e a Rússia é visto com preocupação na Casa Branca. Berlim pagaria caro a aleivosia da ex-Chanceler Angela Merkel ter afirmado um dia ‘’que a Europa deveria tomar o seu destino nas suas próprias mãos.’’
A ambição de a Europa implementar um projeto de autonomia estratégica ficaria irremediavelmente comprometido, e iria condicionar também o novo conceito estratégico da União Europeia (“Bússola Estratégica”), em laboração. Algo semelhante ocorreria com o Conceito Estratégico da NATO na forja, a ser aprovado na Cimeira da Organização, em junho deste ano, materializando o reforço da posição dos EUA na Europa.
Em última análise, uma guerra na Europa serviria para legitimar a presença militar norte-americana no continente, aumentando a dependência europeia de Washington a todos os níveis, em particular ao nível económico. O sonho de um projeto geopolítico autónomo na Europa ficaria condenado no curto e médio prazo, remetendo a Europa para um apêndice estratégico de Washington.
No plano interno, um conflito na Ucrânia desviaria a atenção da sociedade americana para a desastrosa retirada das forças norte-americanas do Afeganistão, e dos problemas de governação da Administração Biden, responsáveis pela sua baixa popularidade. Por outro lado, um conflito na Ucrânia representa para os EUA uma oportunidade estratégica semelhante à de março de 2003, que levou à invasão do Iraque.
Não sendo, por princípio, as guerras jogos de soma positiva, não será difícil perceber quem serão os ganhadores e os perdedores de uma guerra na Europa.