É difícil opinar sobre os mecanismos judiciais de combate à corrupção sem que as pessoas desconfiem de mim. Sou advogado e, muitas vezes, de defesa. Obviamente, isso não faz de mim um defensor da corrupção, mas sim um contribuinte para uma Justiça digna e com garantias. Portanto, aqui fica o registo claro: concordo que as autoridades judiciais combatam com vigor a corrupção, desde que o princípio maquiavélico de que os “fins justificam os meios” esteja absolutamente arredado desse combate. Com respeito pelos princípios de um Estado de Direito Democrático, sou também favorável a mecanismos de negociação de penas ao estilo americano, pois são muitas vezes o melhor e mais eficaz caminho para o Estado e arguidos.

Não é nada disto que, regra geral, tem acontecido na tão famosa delação premiada que governa o Brasil, como se fosse o único meio de prova existente à face da terra. A Justiça negociada exige procedimentos rigorosos e transparentes. Além disso, um dos pressupostos básicos desse instituto é que seja, sem margem para dúvidas, uma manifestação de vontade livre e consciente do delator. Ora, a forma como a delação premiada tem sido aplicada no Brasil pode até merecer o aplauso dos grandes justiceiros do mundo e dos seus órgãos de comunicação social. Estes, envoltos na sua procura cega por um mundo “puro” no âmbito de uma espécie de Justiça divina e moral, não olham a meios para atingir os fins. No entanto, “deixa os cabelos em pé” de qualquer jurista formado em democracia e que não tenha mais ambição do que uma Justiça terrena e equilibrada.

O modus operandi é relativamente simples: primeiro deixa-se o suspeito a “pensar” numa das horríveis cadeias brasileiras; passado algum tempo um procurador pergunta-lhe se quer ir dormir a casa e explica-lhe que para o fazer terá que celebrar um acordo de colaboração premiada. Como se não bastasse, ainda lhe dá a entender qual é a delação que desejaria para o deixar regressar ao conforto do lar e da sua família. Como é evidente, não há verdade, objetividade ou Justiça que resista a procedimentos deste tipo. Nestas condições, qualquer pessoa normal delata o que tiver que delatar. Diz-se até que há fila para delatar. Neste cenário, começa a ser difícil distinguir o bem do mal e a verdade da mentira. Com isso, o regime democrático do Brasil vai apodrecendo ainda mais, imbuído naquele espírito sempre perigoso e lunático de que “um homem melhor nascerá”. Aliás, este é um espírito descendente da operação mãos limpas em Itália. Pois bem, o homem melhor que nasceu das cinzas da democracia italiana foi, entre outros, Berlusconi.

Há várias formas de corrupção e no Brasil tem-se combatido a corrupção com corrupção. Para o bem das nossas democracias, é preciso que as pessoas ganhem consciência de que tão ou mais grave do que a corrupção económica é a corrupção do sistema de justiça democrático. Sem ele não há segurança e não há democracia. Pode até haver uma aparência de justiça, mas não há Justiça.