As últimas décadas consolidaram a posição da República Popular da China no comércio mundial, enquanto principal centro de produção, assente num conjunto de fatores, dos quais se destacam o reduzido custo da mão de obra e a capacidade produtiva em escala. As grandes potências mundiais assistiram confortavelmente a esta ascensão, focadas na multiplicação dos lucros e no crescimento galopante das respetivas multinacionais.

A História ensinou-nos que a concentração económica provoca, inevitavelmente, um ponto de cisão. Este chegaria, surpreendentemente, através de uma pandemia, para a qual nenhum dos mercados estava preparado.

Se os efeitos desta crise sanitária seriam sempre nefastos para a economia, as contingências ditadas pela cronologia da mesma contribuíram para o acentuar do impacto no comércio internacional.

A análise desta cronologia é paradigmática na compreensão da dependência da economia mundial do mercado chinês. Se o primeiro caso em território português apenas foi detetado no mês de março, as dificuldades no abastecimento de matérias-primas fundamentais para a atividade de alguns setores registava-se já desde janeiro. As medidas de mitigação instituídas pelas autoridades chinesas resultaram em autênticos bloqueios na atividade produtiva e logística, com dezenas de portos e aeroportos encerrados. Verificaram-se, nesta fase, retenções de mercadorias por períodos superiores a três semanas.

A propagação mundial do vírus da Covid-19 e a paralela melhoria da situação sanitária na China levaria à inversão deste cenário. Com o mundo a entrar em lockdown, a brutal máquina produtiva chinesa regressava em força, preparada para responder às necessidades globais de materiais e equipamentos. Esta circunstância provocou uma dependência sem precedentes, com uma procura muitíssimo superior à oferta de ventiladores, equipamentos de proteção individual (EPI) e hospitalares neste mercado.

Um desafio único para os operadores logísticos, que nos apresentou cenários inimagináveis para responder às missões que nos eram confiadas. Uma delas implicou deslocalizar uma mercadoria que deveria partir de Xangai para um aeroporto que distava 800 km deste – com um caráter de urgência para o abastecimento das unidades do Serviço Nacional de Saúde.

Não se questionam as dificuldades enfrentadas pelos operadores logísticos chineses no escoamento das mercadorias, que seriam experimentadas por qualquer mercado perante as mesmas circunstâncias. A equação prende-se com a total dependência de um mercado, cuja capacidade de resposta nunca conseguiria equivaler às necessidades dos milhares de solicitações diárias.

A evolução desta dinâmica viria a adicionar uma nova problemática à já complexa gestão logística internacional, cujo impacto começou a sentir-se no primeiro semestre, com um brutal agravamento no segundo, que está a afetar o mercado europeu de forma particularmente acentuada no atual trimestre, nomeadamente no que concerne a preços e à escassez de espaço/navios e insuficiência de contentores.

Concorre para este cenário um conjunto de fatores, todos eles direta ou indiretamente relacionados com a pandemia de Covid-19. À cabeça, destaca-se o acentuar do desequilíbrio da balança comercial da China com os EUA e a Europa.

O elevado aumento de capacidade disponibilizada pelos Armadores na rota do Pacífico, cujos importadores americanos há vários meses se apressaram a aceitar pagar preços de transporte muito mais elevados que os Carregadores e Consignatários europeus, os enormes congestionamentos em vários portos na América, os grandes atrasos no desembaraço aduaneiro, as longas demoras nas entregas e descargas das mercadorias, os enormes atrasos na devolução aos terminais de contentores vazios e a incapacidade dos EUA em produzir e exportar mercadoria suficiente de forma a equilibrar os movimentos na rota do Pacífico, causou uma enorme pressão na expedição das mercadorias do Extremo Oriente, principalmente da China, a já há muito tempo apelidada de “fábrica do mundo”, com destino à Europa.

Apesar de a esmagadora maioria dos navios utilizados no corredor Ásia-Europa ter superado a capacidade impressionante de 20 mil TEUS, e mesmo considerando que vários são os navios cuja capacidade ultrapassa os 24 mil TEUS, a falta de equipamento adequado disponível, a maior demora nas operações aduaneiras e portuárias, a anulação de várias viagens, rácios de “rollover” que chegam a atingir os inacreditáveis 39,3% em várias escalas na origem e portos de transbordo, têm sido responsáveis pelos sistemáticos e irrecuperáveis atrasos, aumentando significativamente o tempo de trânsito, os brutais e sistemáticos aumentos de preço e a deterioração na qualidade de serviços, fazendo com que fábricas europeias, que dependem das matérias primas e componentes chineses, importadores/cadeias de retalho tenham de se precaver com maiores stocks, aumentando assim as necessidades de tesouraria, espaço de armazenamento e, consequentemente, os riscos do negócio.

Muito embora a transferência de local de produção, cuja concentração excessiva se situa atualmente na China, muito provavelmente toda esta problemática fará com que os decisores empresariais repensem estratégias, fazendo com que os percalços na globalização aconteçam pelo lado do custo e dos problemas de gestão da cadeia logística, e não por decisões ou dificuldades de carácter político.

Este cenário constituiu o mote para centenas de organizações repensarem a sua supply chain, apostando na regionalização da mesma e na aposta em fornecedores locais ou de proximidade. Estudos independentes revelam que dois terços das empresas experimentaram problemas no transporte internacional de mercadorias neste período, e que metade das organizações está a planear operar mudanças nas suas cadeias logísticas.

A República da Coreia, o Vietname, a Tailândia, a Malásia, a Indonésia, o Camboja, a Índia e o Bangladesh, por exemplo, têm sido capazes de atrair algumas das empresas descontentes com esta experiência, mas certamente demorarão muitos anos a conseguir atingir os níveis e a qualidade com que a China tem vindo a impor-se ao mundo!

É, contudo, fundamental que saibamos interpretar os ensinamentos desta crise. O problema não está na China, mas sim na dependência de um só mercado. A solução não passa pela procura de um novo “El Dorado” produtivo, mas pela diversificação e gestão inteligente da cadeia logística, sem descurarmos o continente europeu, nomeadamente Portugal.

Isto traduz-se no investimento na digitalização dos processos, tirando partido de ferramentas de inteligência artificial que nos permitem utilizar a big data para otimizar as diferentes etapas da cadeia logística – desde a escolha do local, das soluções possíveis, dos trajetos, frequências de abastecimento, “lead times” e até de controlo de temperatura.

Após um ano de grandes aprendizagens, 2021 representará, indubitavelmente, um período de vincadas transições na logística internacional.