Na Coreia do Norte, após dois anos de pandemia sem relatar um único caso graças à política de isolamento total, a Covid-19 têm-se propagado rapidamente, com mais de 3,5 milhões de infeções e 70 mortes relatadas (embora os especialistas estimem o número real esteja na casa dos milhares). O líder Kim Jong-un enfrenta agora o maior desafio desde que assumiu o poder há uma década, numa altura em que a economia sofre tanto do efeito das sanções de 2017 como do encerramento do comércio ao exterior.
O especialista no regime ditatorial Andrei Lankov diz à “BBC” que, graças à maioria da população estar vulnerável, desnutrida e não vacinada, “haverá um número de mortes maior do que o normal”, mas que isso não significará o início de uma revolução. “[Os cidadãos] estão desorganizados, aterrorizados e isolados. Se tomarmos o pior cenário, 0,5% da sua população morrerá, mas há 20 anos passaram por um episódio de fome massiva na qual 2 ou 3% da população morreu e quase não houve impacto político”, explica.
“Assim, a ameaça não é a pandemia em si, mas uma reação extrema do governo: por exemplo, se fizerem como a China e fecharem as principais cidades, o pouco que ainda está a funcionar na economia poderá ser paralisado, causando sérias dificuldades económicas e talvez agitação política”, acrescenta o professor de Estudos Coreanos na Universidade Kookmin em Seul e diretor da página de notícias e análise especializada “NK News”.
Lankov, que estudou na Universidade Kim Il-sung de Pyongyang na década de 1980 e é considerado por muitos o maior especialista do país comunista, considera natural a estratégia adotada por Kim em 2020. “[A elite] sabia que podia arcar com um nível de autoisolamento que seria inaceitável em qualquer outro país e tentaram tirar proveito dessa vantagem”, mas falharam.
“Nalgum lugar, de alguma forma, alguém com Covid conseguiu passar”, apesar de, desde a primavera de 2020, ninguém ter sido autorizado a entrar na Coreia do Norte e apenas um pequeno número de diplomatas e expatriados estrangeiros foram autorizados a sair. O comércio foi reduzido ao mínimo e as conexões de trem com a China e a Rússia foram fechadas, explica o especialista russo.
A ideia era “manter o isolamento por alguns anos até que a pandemia acabasse no mundo, depois conseguir vacinas gratuitas para os 25 milhões de norte-coreanos e o assunto estaria resolvido”. Agora, tem a suspeita que “0,01% da elite foi vacinada”, mas o resto, que estaria dependente de campanhas de vacinação que precisavam de contar necessariamente com pessoas estrangeiras, ficou por fazer. “E eles também não têm capital, equipamento ou experiência para desenvolver uma vacina própria”, indica.
Questionado sobre o sistema de saúde, Lankov explica que “a Coreia do Norte tem muitos médicos, mas carece de materiais e equipamentos. Os hospitais rurais funcionam essencialmente com tecnologia do início do século 20. Isso significa que, se ocorrer um surto, como ocorre agora, quase não há acesso a recursos como ventiladores”.
Entretanto, Kim tira proveito da força militar que tem ao seu dispor (os gastos militares são um terço do PIB e o serviço militar dura dez anos) e aposta, por um lado, na intensificação dos lançamentos de mísseis — já foram 17 este ano, incluindo um intercontinental que coloca os Estados Unidos ao alcance de um ataque nuclear — e, por outro, na escalada da ameaça à Coreia do Sul com um ataque nuclear preventivo.
Esta prioridade ao poderio militar foi confirmada pela invasão russa da Ucrânia. “Para Pyongyang a invasão da Ucrânia é uma boa lição: nunca, jamais, desista das suas armas atómicas. A Ucrânia tinha muitos dispositivos nucleares após o colapso da União Soviética e concordou em entregá-los em troca de promessas de segurança e integridade territorial. Essas promessas foram quebradas”, afirma.
Mesmo assim, quanto ao vizinho do sul, Kim está longe de realizar uma invasão. “Não é algo realista. A Coreia do Norte sonha com isso, mas não vai acontecer tão cedo”.
Quanto ao apoio do regime à Rússia, Lankov diz que “a diplomacia da Coreia do Norte não é ideologicamente motivada, mas muito pragmática. Querem que a Rússia, que é membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, retribua o favor vetando resoluções nesse órgão para sancionar a Coreia do Norte pelos testes nucleares e de mísseis”.
Questionado sobre possíveis ameaças ao poder de Kim, o investigador é peremptório: “Acho que hoje ele é o líder indiscutível”. A elite norte coreana, defende, entende que tem de permanecer unida “porque a instabilidade pode causar o colapso do regime e o país provavelmente seria absorvido pelo Sul como a Alemanha Oriental. Ela sabe que não está no mesmo barco, mas num submarino, sem opção de fuga. E, se você estiver num submarino, não matará o seu capitão”.
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