A pandemia de Covid-19 veio expor as terríveis consequências de décadas de privatização e mercantilização. De um dia para o outro, vimos hospitais a transbordar, profissionais de saúde sem equipamento de proteção, lares de idosos transformados em morgues, filas para fazer testes ao longo de semanas e escolas que tudo tentaram para se conectar com crianças e jovens confinados. Durante todo este tempo, as pessoas foram instadas a ficar em casa quando, na verdade, centenas de milhões não tinham um local de residência adequado, não tinham acesso a água e saneamento, não tinham proteção social.
Precisamos, assim, de uma mudança de rumo radical. Décadas de transferência do fornecimento de bens e serviços sociais para entidades privadas resultaram, muitas vezes, em ineficiência, corrupção, diminuição da qualidade, aumento de custos e consequente endividamento das famílias. Os pobres foram marginalizados e o valor social das necessidades básicas acabou por ser destruído.
Houve um lampejo de esperança quando, de repente, no meio da crise, as pessoas começaram a reconhecer o papel central dos serviços públicos para o funcionamento da sociedade. “O que esta pandemia revelou é que existem bens e serviços que devem ser colocados fora das leis do mercado”, resumiu o presidente francês Emmanuel Macron. Mas, além das declarações políticas, há sinais preocupantes de que não se foi além das declarações retóricas.
Basta ver o que está a acontecer com a água, um bem ainda mais vital agora que lavar as mãos é a melhor maneira de nos protegermos do vírus. Cerca de quatro biliões de pessoas no mundo sofrem de grave escassez de água durante pelo menos um mês por ano. É o caso, por exemplo, da província chilena de Petorca, devido ao uso excessivo de água por empresas produtoras de abacate que operam na área. O Ministério da Saúde decidiu aumentar a alocação diária de água para 100 litros por pessoa, mas apenas oito dias depois revogou a decisão, colocando os interesses das empresas privadas acima dos direitos da sua população.
E o que dizer da tão esperada vacina? Reconhecendo que não se pode confiar nas forças de mercado, mais de 140 líderes e especialistas mundiais apelaram aos governos e instituições internacionais para garantir que os testes, tratamentos e vacinas Covid-19 sejam disponibilizados a todos sem nenhum custo. Isto parece irrealista, uma vez que as empresas farmacêuticas continuam a competir pela primeira vacina e a vendê-la a quem fizer a melhor oferta.
O setor da Educação também foi afetado. Apesar de centenas de escolas privadas terem abandonado os seus alunos e funcionários durante a crise, o Banco Mundial mantém a sua posição de que sistemas privatizados e soluções de mercado devem ser promovidos a todo o custo. Esta é uma recomendação particularmente influente, num momento em que os países de baixo rendimento estão a endividar-se.
O mantra global de praticar uma “distância saudável” para evitar a propagação do coronavírus é inútil para os cerca de 1,6 biliões de pessoas que não têm habitação adequada e para os 2% da população mundial em situação de sem-abrigo. Pior, na área da habitação, a maior parte dos governos não parecem estar dispostos a regular os players financeiros que ajudaram a criar estas condições. A financeirização da habitação resultou no aumento das rendas, no despejo de inquilinos, na falta de manutenção e no açambarcamento de unidades vazias para reforçar os lucros. Os efeitos são ainda mais graves no contexto da pandemia.
Com a mercantilização de bens e serviços públicos, os governos não estão a cumprir com as suas obrigações em matéria de direitos humanos. Não somos mais titulares de direitos, senão clientes de empresas privadas que buscam somente a maximização do lucro e são responsáveis apenas perante os seus acionistas. Isto afeta as nossas democracias, acentua as desigualdades e gera uma segregação social insustentável.
Somos seis especialistas independentes das Nações Unidas, atuais e antigos Relatores Especiais sobre direitos humanos. É nesta qualidade que queremos partilhar esta mensagem: levar os direitos humanos a sério implica abandonar a ideia de que os Estados ocupam o segundo lugar face às entidades privadas. Precisamos de alternativas. Chegou o momento de dizer claramente que a mercantilização da saúde, da educação, habitação, água, saneamento e outros bens e serviços não só exclui os mais pobres, como pode levar a violações dos direitos humanos.
As obrigações dos direitos humanos não cessam para os Estados quando eles delegam bens e serviços básicos a empresas privadas e ao mercado, muito menos quando o fazem sob condições que prejudicam o cumprimento dos direitos e a subsistência de muitas pessoas. Também é necessário que as organizações multilaterais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, deixem de impor aos países a privatização dos serviços públicos.
Apelamos a todos aqueles que estão empenhados na salvaguarda dos direitos humanos que enfrentem as consequências da privatização. Assim como algumas organizações de direitos humanos começaram a alertar sobre a necessidade de sistemas fiscais justos, chegou o momento de responsabilizar os responsáveis pelos impactos tremendos da privatização. Os direitos humanos podem ajudar a articular o tipo de bens e serviços públicos que desejamos: participativos, transparentes, sustentáveis, responsáveis, não discriminatórios e ao serviço do bem comum.
Esta pandemia é provavelmente a primeira de uma série de grandes crises que se avizinham, desencadeadas pela emergência climática. O mundo assinalou o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, a 17 de outubro, imerso numa recessão económica sem precedentes desde a Grande Depressão. A crise da Covid-19 deverá empurrar mais 176 milhões de pessoas para a pobreza. Os direitos humanos estão em risco de ser violados, a menos que haja uma mudança drástica do modelo e investimento em serviços públicos de qualidade. Não é uma normalidade a que se possa regressar.
Este texto é assinado em conjunto com Juan Pablo Bohoslavsky, ex-Especialista independente das Nações Unidas em Dívida Externa e Direitos Humanos; Koumba Boly Barry, Relatora Especial das Nações Unidas sobre o Direito à Educação; Leilani Farha, Ex-Relatora Especial das Nações Unidas sobre Direito a Habitação Adequada; e Magdalena Sepúlveda Carmona, Ex-Relatora Especial das Nações Unidas sobre Pobreza Extrema e Direitos Humanos