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Crise e superação, notas dispersas para uma melhor justiça penal

A realização da justiça em processo penal, e designadamente a adequada salvaguarda e reposição dos direitos dos ofendidos não pode passar nem pelo esmagamento nem sequer pela compressão dos direitos dos arguidos.
31 Agosto 2024, 10h02

O complexo e multifacetado contexto social hoje vivido, bem como a real intervenção da máquina judiciária na vida dos cidadãos, geram problemas graves, uns comuns a todas as classes profissionais, outros específicos dos juízes, dos procuradores, dos advogados, dos polícias e dos restantes intervenientes processuais; todos contudo repercutidos na vida do normal cidadão que espera dos profissionais do foro, em particular, c da máquina judiciária, em geral, uma pronta resposta aos seus problemas e anseios de Justiça, uma resposta que seja justa, inteligente, adequada, rigorosa, humana, equitativa, eficaz, eficiente, mas sempre justificada pelos valores balizados pela Lei e prosseguidos pelo Direito.

Hoje, infelizmente, tanto o Estado e a sua máquina judiciária, como, por arrastamento, muitos dos profissionais do foro, não cumprem – as mais das vezes porque não podem mesmo cumprir – as suas atribuições funcionais normais, legais e constitucionais, c sobretudo a missão de contribuir para uma sociedade mais igualitária, mais pacífica e mais justa, onde os valores individuais e comuns fundamentais para a vida em sociedade sejam mais que imperativos, aceites e reconhecidos pela população como superiores aos vis, mesquinhos e egoístas interesses e, como tal, susceptíveis de serem justa, adequada e atempadamente reconhecidos e implementados pelos Tribunais que, apesar da sua importância, não têm a virtualidade de se substituir ao normal e natural cumprimento dos deveres dos cidadãos, das empresas e das instituições públicas.

Sem contar com as aporias e insuficiências dos contenciosos civis, administrativos, societários, tributários, desde logo há que contar com o complexo edifício legal punitivo com que os cidadãos e os profissionais do foro são, no dia-a-dia, confrontados no exercício das suas funções e das suas actividades. Para além do Código Penal e do Código de Processo Penal, há todo um conjunto de legislação avulsa que, com a actual tendência de neo-incriminação, vem sendo profusamente aprovada, para além de que, a todo o momento, se reveem os vários diplomas legais de diferentes regimes jurídicos numa crescente asfixia, dispersão, insegurança, indefinição e mesmo ausência de previsão.

Crê-se, erradamente, que é na lei em si que residem as soluções para tantos e tantos problemas que afectam a Justiça. Vã esperança, doce ilusão. Não se revejam as práticas e não se melhorem os procedimentos e tudo ficará na mesma. Diz-se já, há muito, que os tempos que correm são de crise na justiça. Hoje tudo se discute e tudo se questiona. Os argumentos de autoridade já não colhem. Não há profissionais ou classes profissionais mais respeitadas ou mais credíveis. Há sim uma maior democratização e mediatização e, necessariamente, em consequência, uma maior discussão e também superficialidade e populismo no tratamento das questões, sejam elas as menos relevantes, sejam elas as de maior importância.

Tudo ou quase tudo, infelizmente, se resume ao mínimo denominador comum. Ao que parece e não ao que é. Ao que apetece e não ao que devia e deveria ser. À arbitrariedade… À espuma dos dias…

Já não se tratam os assuntos com seriedade, rigor e profundidade, procurando destrinçar os fenómenos ou epifenómenos das suas causas mais directas ou antecedentes mais remotos, mas sim encontrar reacções epidérmicas muitas vezes desculpatórias e explicações perfunctórias, ou mesmo patetas, mas facilmente aceites pela generalidade dos cidadãos, por corresponderem a simples emanações não do senso comum mas de um registo de conversa de café. Aliás, o comentário, mesmo de juristas, não passa, muitas vezes, da rama. É o predomínio dos critérios de percepção errada e quantitativos da profusão de fake news sobre os critérios da objectividade, da ciência, de qualidade e de fundamentação substantiva.

Há que constituir um grupo de reflexão sobre as questões jurídico penais e processuais penais que sirva de baluarte para o estudo e a apresentação de propostas inovadoras e  para  a crítica  construtiva do  sistema  judiciário   vigente,  bem como  de viveiro de pessoas válidas e experientes e de ideias interessantes e pragmáticas para a profícua participação e adequada representatividade nas estruturas associativas  (v.g. CSM, CSMP, ASJP, SMMP, OA, Forum Penal – Associação dos Advogados Penalistas, APAV, Instituto  de  Criminologia,  Instituto Nacional  de  Medicina   Legal,   European Criminal Bar Association, União   dos Advogados Europeus, União da Ibero-Americana da Ordem dos Advogados, União Internacional dos Advogados, Internatíonal Bar Association, etc) nas estruturas e comissões  estaduais  ou  internacionais (Comissão  Parlamentar  dos  Direitos, Liberdades e Garantias, Comissões Legislativas, Instituições da União Europeia, Organização das Nações Unidas, etc).

Há que  dinamizar o CEJ e a sua Direcção e a Ordem e os seus  órgãos  no sentido  de criarem  ou  incentivarem condições mínimas que  possibilitem  aos auditores e estagiários e aos juízes, magistrados do MP e aos advogados já em exercício uma formação inicial e complementar conjunta e uma actualização continuada e exigente dos  seus  conhecimentos e a troca de experiências, designadamente com  a realização de colóquios, palestras, cursos,   conferências,  encontros  e  congressos,  desde   já   se propondo aqui um colóquio sobre o papel e o diálogo entre as profissões  jurídicas, uma palestra sobre as reformas (ainda não realizadas) do processo penal e do regime das contra-ordenações, um  simpósio sobre inovação nas sanções criminais e humanidade na sua  execução, uma conferência sobre a independência e a legitimação do poder judicial  e, finalmente, um congresso sobre cidadania nas instituições e ética das profissões. Sem prejuízos apriorísticos. Sem estados de alma.

Há que lidar com a comunicação social sem constrangimentos, mas com firmeza, no sentido de, pedagógica e eficazmente, explicar aos cidadãos quais os seus direitos e qual a razão por que os vê tantas vezes espezinhados, desrespeitados pela própria ineficiência ou insuficiência na actividade dos Tribunais ou dos profissionais a eles ligados e, sobretudo, qual a possibilidade de intervenção e, porventura, de responsabilização individual e do sistema.

Há que ver implementada e melhorar a regulação do sistema de selecção no acesso à profissão, para o tornar apelativo e capaz de convocar os melhores, bem como do sistema de apoio judiciário e de nomeação de patrono ou de defensor, de modo a permitir a qualidade e a independência dos profissionais e a livre escolha de advogado.

Há que consciencializar todos os profissionais do foro da importância do julgamento de cada caso concreto, de cada problema posto perante a justiça, de cada cidadão cuja pretensão é confiada a um sistema conservador e, quantas vezes, tabelar, burocrático, caduco e falido.

Há que limar arestas e evitar conflitos entre magistraturas, advogados, polícias e funcionários judiciais, promovendo a criação de diálogo franco e efectivo, de harmonia e da aceitação recíproca nas relações entre estes e estes e os advogados, quer no plano orgânico-estrutural, quer no plano funcional, no sentido de optimizar estes recursos humanos como verdadeiros instrumentos do processo global de reestruturação e de eficácia da Justiça portuguesa.

A realização da justiça em processo penal, e designadamente a adequada salvaguarda e reposição dos direitos dos ofendidos não pode passar nem pelo esmagamento nem sequer pela compressão dos direitos dos arguidos.

Por exemplo, devem os tribunais ser dotados de meios humanos especializados que lhes permitam realizar com eficácia e rapidez as diligências internas e exteriores necessárias ao andamento dos processos, para as quais os funcionários judiciais actuais, os peritos e as funções auxiliares são manifestamente insuficientes e, alguns, não têm preparação e vocação. Deverá ser consagrada a garantia efectiva do direito ao juiz, do direito ao advogado e a garantia efectiva de duplo grau de jurisdição em matérias de direito e de facto em processo penal.

E a defesa dos direitos das vítimas deverá passar por medidas como o estabelecimento e o efectivo funcionamento de fundos de garantia que assegurem a atempada liquidação de indemnizações aos ofendidos, em caso de impossibilidade absoluta  ou temporária do seu  pagamento pelo  arguido  e  demandado, bem  como  a  adopção  das  competentes medidas  organizativas, materiais  e administrativas, humanas  e pessoais,  adequadas a impedir  o protelamento dos processos pendentes ou, pior, o automatismo judiciário acrítico e a tentação do populista ou política e mediaticamente correcto. Sob pena de capitularmos perante pequenos ditadores, poderes crescentemente irracionais e tendencialmente insindicáveis e perante o abuso, o desvio e a arbitrariedade.

É um caderno de encargos exigente e desafiante, mas há que enfrentá-lo com saber teórico, com inteligência prática e com ética, rigor, frontalidade e coragem. Sem desperdícios, lutas fratricidas ou inúteis e recíprocas queixas, queixinhas e queixumes que nada resolvem.

Votos de um bom início de ano judicial!

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