Em Março, a primeira vítima mortal da pandemia Covid teve identidade: nome, idade, profissão. A segunda também, por ser uma pessoa conhecida. Depois, das pessoas passámos aos números. E, se estávamos atentos aos primeiros comunicados, depressa os encarámos com a mesma emoção com que lidávamos com o boletim meteorológico.
Chegados a Maio, disseram-nos para sair; garantiram que os restaurantes cumpriam as regras de segurança, aconselharam-nos a recuperar a liberdade e o sol do Verão ajudou a descontrair. O obediente Povo saiu de casa, foi às praias, tomou o cafezinho nas esplanadas, confraternizou!
Numa qualquer altura que não sei precisar, apelou-se à resiliência, que é agora uma palavra muito usada (até nome de plano de recuperação nacional). Não, Povo, não queiram ser resilientes, a menos que desejem que tudo volte ao mesmo. Material resiliente é bom para o restauro de artérias e outros vasos sanguíneos, que estes, sim, queremos que mantenham a forma inicial. Nós, o Povo, queremos avanços, progressos, melhorias.
Os sinais de alerta voltaram em Setembro. Passado o calor de Agosto, o laborioso Povo voltou ao trabalho, aos transportes públicos, à anormal “normalidade”. Conviveu e… infectou-se. Era preciso dar um abanão! E mudar comportamentos. Da contingência passou-se à calamidade. Em Novembro, aos deveres de urbanidade juntámos o dever cívico de recolhimento domiciliário. Seria para ficar de novo em casa? Graça Freitas, na sua infinita sabedoria, veio-nos comunicar que podíamos ir aos espectáculos, fazer compras, levar as crianças à escola, enfim, fazer uma vida normal (bem… sempre com cautela e lavando as mãos). Mas, então, onde é que eu não podia ir?
O que vinha a ser uma tendência de crescimento do número de novos casos passou ao desgoverno. Aquilo já não era uma curva, era uma falésia, com o número de novas infecções, de internados e infelizmente de óbitos a subir sempre a pique. Era preciso abanar com mais força! Não o vírus, mas o insensato Povo que tinha ido aos restaurantes, aos espectáculos, deixado o teletrabalho e que, claro!, tinha-se infectado.
Como consequência, os hospitais encheram-se (quem não tiver Covid espere, se faz favor). Camas ainda se arranjavam – mais juntinhas que já estão todos contaminados –, mas os médicos, os enfermeiros, o equipamento? O Ministério da Saúde não ia tratar disso durante o Verão? Ia, mas não teve disponibilidade. A culpa foi do surto em Lisboa, que lhes ocupou o tempo todo. Palavra de Presidente. Que explicou, ainda, que os portugueses, às vezes, têm dificuldade em compreender estes (e, acrescento eu, outros) factos.
Para a última quinzena de Novembro, foi declarado o estado de emergência “de âmbito limitado” e “efeitos largamente preventivos”. E, eliminadas “as dúvidas jurídicas”, íamos ficar em casa. Confinados outra vez? Oh, não! Nada disso. Muito mais suave. Só depois das onze da noite e aos fins-de-semana e com excepções. Mas o arguto Povo viu tantas excepções que o primeiro-ministro cortou o mal pela raiz: às 13h de sábado e de domingo fecha tudo. “E, então, não se vão formar imensas filas nos supermercados nas manhãs do fim-de-semana?!” Não faz mal, que o vírus ataca sobretudo à noite. Portem-se bem, se querem sair no Natal.
Apesar do alerta dos especialistas para o risco inerente ao levantamento de restrições no Natal, o Governo optou pelo alívio dessas medidas e deixou ao bom senso a gestão da Consoada, o que permitiu que alguns tivessem o que há muito ambicionavam. Este ano na casa dos pais? Na casa dos sogros? Não, sozinhos, na nossa. Porém, como o bom senso tem muitas variantes, a DGS fez algumas recomendações para a quadra festiva. Mas, ou porque fazia frio nos quintais ou porque as escadas dos prédios não ofereciam as melhores condições, as famílias preferiram reunir-se em casa para a ceia (que o Natal pode ser quando um Homem quiser, desde que seja ao jantar).
Esbatendo a euforia das vacinas, Janeiro trouxe a confirmação das “profecias” dos médicos e dos matemáticos quanto ao agravamento da crise sanitária. Com mais de uma centena de mortos em dias sucessivos, a situação tornou-se dramática e houve que confinar de novo o irresponsável Povo que foi às compras em vez de fazer compotas, visitou parentes, trocou prendas e afectos e… infectou-se.
A 13 de Janeiro, o primeiro-ministro anunciou as medidas do novo confinamento para entrar em vigor a 15. As missas salvam-se, as escolas permanecem abertas com a promessa de testes antigénios e, esperando que o vírus não desvalorize a democracia (e tire folga), podemos circular para ir votar.
Que a Esperança não se confine.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.