Enquanto Lisboa está transformada num gigante estaleiro e sob a promessa de vir a tornar-se num resort, fomos diariamente bombardeados com pequenos fragmentos da fuga de um alegado homicida, transformando-se os espaços de informação numa espécie de telenovela, no âmbito da qual somos instados, como no jogo, a descobrir o alvo. O que fica, no pós-genérico, é um profundo vazio, onde as notícias se acotovelam mas cujo essencial ou fio condutor parecem escapar. Como se nada mais importante se passasse neste país do que a arte da fuga de um alegado criminoso, em larga medida ajudado pela própria Comunicação Social com o constante bombardear de informação sobre as movimentações da polícia.
Pior ainda, atentos os recentes ecos do mais mediático processo, o que trespassa é que, em vez de notícias, nos é dado um guião, a correr em livros ou blogues, cujos escribas foram pagos para esconder a identidade. Feito pelos interessados (ou pelo menos a seu mando) e suportado pela parte da Comunicação Social que lhes está afecta, esse guião convoca-nos ciclicamente, visando-se o apoio a um dos lados da barricada, como se a vida fosse feita apenas para as eleições e a utilidade de cada um se medisse pelo voto. Uma vez este colocado na urna, somos todos, de novo, reconduzidos ao nosso papel de espectadores e remetidos à quase total ignorância das decisões em nosso nome tomadas.
Enquanto a caça ao homem (a este ou ao próximo…) prossegue, a espaços e timidamente, fomos também confrontados com duas notícias insólitas. De um lado, por motivos que só o próprio saberá explicar, o então secretário de Estado Sérgio Monteiro decidiu, na prática, perdoar uns milhões ao grupo de empresas com que, ao mesmo tempo, negociava a alienação da TAP. Mais do que meras viagens para ir ver futebol, o que está aqui em causa é um negócio cujos contornos surreais começam pela concreta identidade do comprador e sobre o qual se exigiria uma postura absolutamente cristalina. Por outro, a Câmara Municipal de Lisboa foi condenada a pagar mais uns milhões a outro tristemente célebre grupo económico, neste caso, o do Senhor Névoa, desta feita pela privação do uso de terrenos, os quais estão abandonados até hoje.
Em ambos os casos não fomos tidos nem achados nas decisões mas seremos, obviamente, instados a pagar as consequências, à semelhança do que sucedeu com o BPN, o BES (ao qual, “by the way”, o sempre presente Sérgio Monteiro está ligado, encarregue de o vender…) e o Banif.
E, num mundo onde, pelos vistos, tudo se resume a dinheiro, talvez não fosse pior começarmos a tirar consequências do muito que pagamos por erros que não cometemos.
A autora escreve segundo a antiga ortografia.