Não há quarta república a caminho, nem a possibilidade de Portugal se tornar num Estado neofascista. Do mesmo modo, não houve ditadura trotskista quando o Bloco ascendeu a scores e influência impensáveis numa democracia saudável. A robustez do sistema democrático português é notável ao fim de 46 anos recheados de momentos difíceis e provações profundas. Em todos os momentos, os valores da liberdade, da democracia e da igualdade perante a lei foram mais fortes do que os duros constrangimentos das diferentes crises atravessadas.

Ainda assim, tudo o que é realmente importante merece cuidado e atenção. O regime enfrenta actualmente desafios que vêm essencialmente do desacerto dos fundadores. A estreiteza democrática dos protagonistas dos dois maiores partidos abre espaço para o crescimento dos dois extremos. Se os dois principais interessados desvalorizam a intocabilidade dos grandes princípios democráticos, o flanco relaxa para a entrada do oportunismo anti sistémico.

Rui Rio sempre exerceu o poder em manifesta tensão com os procedimentos que uma democracia saudável exige. Caluniou artistas, zangou-se com a imprensa, inventou conflitos com toda e qualquer forma de escrutínio ao exercício do seu poder. Acreditou sempre na fórmula salazarenta de que, se não roubasse e tivesse o balancete certo, seria o bastante para não ter de dar satisfações a ninguém.

A democracia não funciona assim, uma grande cidade ou um país não se governam de lápis atrás da orelha e livro de razão aberto, em desprezo pelo escrutínio, pelo debate de ideias e soluções, pelo compromisso e pela visão global e de futuro, que a cada dia é exigida. Um governante não é um guarda-livros, nenhum grande estadista foi um guarda-livros. Os saudosistas agarram-se essa faceta de Salazar, porque sabem que não podem lembrar outras.

António Costa, por sua vez, é um pragmático do exercício do poder. Lembra muito Groucho Marx quando dizia “estes são os meus princípios, mas, se quiser, tenho outros”. Do Bloco ao PSD, Costa joga tudo com absoluta flexibilidade, para a manutenção do seu poder e do grupo que o segue nesta demanda. É a história da sua vida. O elogio recorrente que lhe fazem, recai sempre na habilidade, nunca na verticalidade.

Não é de estranhar, portanto, que a nenhum dos dois, Costa e Rio, soe estranho esta sobreposição entre PS e PSD. É verdade que ambos os partidos são tributários da social-democracia, mas também é verdade que as diferentes lideranças ao longo da história se encarregaram de os mostrar diferentes ao eleitorado. A aprovação do pacote legislativo que reduz brutalmente o escrutínio parlamentar do primeiro-ministro, que, com a cegueira anti-Moreira, reduz as possibilidades das candidaturas independentes e condiciona drasticamente o direito de petição, é a cara de Rio e a conveniência imediata de Costa. É, acima de tudo, um golpe ignominioso na democracia.

A democracia assenta em opções claras e diferenciação de escolhas. Deixo a minha homenagem aos Deputados do PS e PSD que se mantiveram fiéis aos princípios fundadores dos dois partidos, votando corajosamente contra este golpe. Hoje, confirmando tudo o que acabo de escrever sobre Rio, soubemos que os Deputados não alinhados serão alvo de um processo disciplinar interno.

Neste momento, a recuperar de um resultado eleitoral trágico, só o CDS mantém a normalidade, entre os três partidos democráticos da fundação do regime. Numa missão de elevada exigência, o CDS tem de voltar a crescer, contribuir com peso para o sistema e preservar a missão de barreira eficaz à extrema-direita. Basicamente, fazer o que a ala esquerda do PS fez durante muito tempo quanto ao outro extremo. Quando a ala esquerda do PS se inebriou e confundiu com o BE, tivemos, e ainda temos, a intoxicação do sistema; se o CDS contemporizasse de algum modo com a extrema-direita, teríamos nova intoxicação e, provavelmente, o fim do CDS.

Os partidos do regime credibilizaram-se ao longo de 46 anos pelo uso da razão, conformada evidentemente num quadro referencial de ideias e valores, que sempre os diferenciou entre si. Os partidos de franjas, ou extremos, caracterizam-se essencialmente pela emoção, pelo imediatismo, falando para públicos altamente descontentes e sedentos de soluções avulsas fracturantes, sem cuidar de enquadramentos ou impactos; a responsabilidade não passa por ali.

Os campos de férias pró-drogas e pró-tudo que lhes apeteça do BE, as manifestações anti-sistema, xenófobas e populistas do Chega, o revisionismo histórico de ambos, o branqueamento dos piores monstros de ambos, não são compatíveis com o exercício do poder num regime democrático. Viu-se o efeito no crescimento da extrema-direita, que teve a participação do BE na governação, pela mão habilidosa de Costa. A ascensão de um extremo provoca sempre a reacção e mobilização do outro.

O reforço do regime, e da democracia, exige líderes que acreditem e professem os valores fundamentais da sua fundação. A convicção na defesa do regime não pode estar exclusivamente a cargo do CDS e de senadores dispersos, como Sérgio Sousa Pinto, Francisco Assis ou Pedro Pinto. O PS terá de exigir infinitamente mais a Costa neste capítulo, preparando a sua sucessão fora dos dois delfins previstos. O PSD terá de reflectir se quer estar à altura de Sá Carneiro ou atrás do balcão da mercearia do poder.

Nenhum dos três partidos democráticos da fundação do regime se pode mimetizar e sobrepor, sob pena do pântano, da descredibilização de si mesmos e do próprio regime; é o que tem acontecido com o duo Costa-Rio. Ao mesmo tempo, nenhum destes partidos pode trocar o discurso da razão pela atoarda da emoção, caindo na tentação de ir buscar às franjas o que não soube cativar no centro do sistema.

Não há nenhuma quarta república a caminho, mas a terceira precisa de se regenerar urgentemente. Não por causa dos extremos, mas pelo centro, que merece respeito e que não desiste da democracia.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.