1. Em Portugal, usa-se e abusa-se do ‘off the record’. Políticos, dirigentes sindicais, desportivos e outros têm muito este hábito. Com o som ligado, dizem o que lhes interessa; depois, já sem som, acrescentam o que verdadeiramente pensam. Esta ‘estratégia’ busca um fim: influenciar o jornalista, levá-lo a circunscrever-se dentro da lógica do ‘ator’.

Deve dizer-se, a propósito de mais um episódio – aqueles sete segundos em que o primeiro-ministro, António Costa, chamou cobardes aos médicos que prestaram serviço no centro de idosos de Reguengos de Monsaraz, no qual morreram 18 pessoas – que aquilo não é nenhum ‘off de record’. Aquilo é, apenas, mais um exemplo, triste, da promiscuidade na vida pública e informativa nacional. O que António Costa faz é uma tentativa de integrar o jornalista e o meio que ele representa, neste caso o “Expresso”, na sua tese sobre os acontecimentos. Sem dar a cara, sem se expor, sem assumir as consequências da sua versão. Isto tem um nome: cobardia.

2. Convém dizer que a instituição ‘off the record’ não é um sucedâneo de uma tertúlia, uma conversa de amigos. Ela deve servir, apenas, para dar ao jornalista elementos relevantes que não podem ser assumidos pela ‘fonte’ mas que ajudam à construção de um acervo noticioso fiel e importante.

Dou um exemplo.

Quando foi presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso estabeleceu o hábito de reunir num hotel de Lisboa, duas a três vezes por ano, com os diretores dos órgãos de informação portugueses. A conversa, que decorria durante o almoço, tinha um propósito: explicar decisões, fazer compreender os meandros da cena política da União, responder a perguntas, passar informações substantivas sobre como tinha acontecido ou como, na visão dele, poderia acontecer. Abordavam-se assuntos importantes, esclareciam-se duvidas. Não me lembro de que alguma vez um desses jornalistas, e eram normalmente 20/25 entre diretores de jornais, rádios e televisões, tivesse sido infiel ao acordo de confidencialidade pré-estabelecido por todos, com todos, à vista de todos.

3. Poderia citar outros casos que testemunhei pessoalmente, de forma individual, com ‘fontes’ diversas, ou em grupo, com decisores momentaneamente importantes na vida pública – mas  sempre para chegar a uma conclusão: é público e notório que António Costa não deu qualquer informação relevante naqueles sete segundos que pretendem ser um período de ‘off the record’ com o “Expresso”. Se aquilo fosse um hábito, António Costa seria um manipulador; se foi um episódio solto, cometeu um erro.

O primeiro-ministro já veio dizer que não pensa aquilo que disse. Pena que não tivesse aproveitado para pedir desculpas formais aos médicos pelo episódio. Segundo consta, foi mais humilde na reunião à porta fechada com a Ordem do que depois, publicamente, cá fora, nos comentários à mesma.

4. Os jornalistas não devem aceitar este tipo de conversas. Elas não trazem nada a não ser cumplicidade e conivência, promiscuidade. São um exemplo de toxicidade em estado puro e talvez expliquem alguma quebra do antigo prestígio associado à profissão de jornalista (que também era menos escrutinada, como tudo e todos).

Neste caso, morreram 18 pessoas. Se o primeiro-ministro entende, entendia, ou pareceu entender, que os médicos foram, eram ou seriam de alguma forma responsáveis pelo que aconteceu, não poderia limitar-se a uma exaltação, genuína ou encenada, num pseudo ‘off’. Tinha a obrigação, em conformidade com as responsabilidades do cargo, de fazer muito mais. Já agora: alguém lhe fez notar isso?

5. Quanto ao resto, só mais uma nota: há jornalistas portugueses que acham que um ‘off’ de António Costa é para respeitar e que outros, de Trump, por exemplo, são para serem esmagados pelo ‘interesse público’. O contrário também é verdadeiro, embora menos visto. Tempos estranhos.