Da costa à contracosta foi uma designação muito disseminada em finais do século XIX e que referia a viagem entre Angola e Moçambique. Eram os tempos dos mapas cor de rosa e das ambições imperais portuguesas em África. Dois portugueses, Roberto Ivens e Hermenegildo Capelo, partiam de Lisboa a 6 de janeiro de 1884 para ligar essas duas costas africanas onde os portugueses tinham assentamentos costeiros. Dessa aventura pouco ficou na memória coletiva para além do seu significado político.

Em 2019, 135 anos depois, um autor angolano, José Eduardo Agualusa, e um outro moçambicano, Mia Couto, ligam de novo a costa e contracosta africanas, agora bordejada por países independentes e em contexto pós-colonial, e criam textos literários. Usam a língua portuguesa como cimento dessa relação e criam estórias para companhias de teatro portuguesas que estão na origem do livro agora publicado pela Quetzal, com o título “O terrorista elegante e outras histórias”.

Reeditando uma experiência que Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz tinham preconizado em 1870, com a publicação anónima do folhetim “O Mistério da Estrada de Sintra” no “Diário de Notícias”, Mia e José Eduardo aceitam o desafio que lhes é feito para uma escrita a quatro mãos. Curiosamente, tanto os autores do século XIX como do século XXI aceitam um desafio, democratizar o seu texto às audiências por meios diversos que apenas o livro. Num caso o jornal, no outro o teatro seriam os veículos para apresentação desta criação literária coletiva, desafiando, como os próprios dizem, a criação literária enquanto ato solitário.

Este livro que reúne três novelas, como os autores as definem, eu enquanto leitora gosto de as ler pensando nelas como contos. Trata-se de textos escritos em tempos diferentes e de forma diversa, ora estando os autores lado a lado, ora correspondendo-se por correio eletrónico. “O Terrorista elegante” que dá nome ao livro, passa-se em Portugal, em que a personagem principal é angolana, do Uíge. Em “Chovem amores na rua do matador” viajamos até Moçambique e em “A caixa preta” poderemos estar tanto em Angola como em Moçambique. Estas viagens adentro diferentes países, fazem-nos pensar como ainda hoje estes se ligam e intercomunicam, partilhando códigos de entendimento ou, como diriam os especialistas, semiosferas.

 

 

Evocando histórias infantis, como o “Capuchinho Vermelho” em que os protagonistas são os mesmos que em “A Caixa Preta” (a saber a avó, a neta e o lobo mau), ou medos adultos como os atentados terroristas, os autores criam estórias com finais em aberto ou semiaberto cujo objetivo é libertar as personagens principais e os leitores dos seus demónios… e, quem sabe, até os próprios autores. Umas vezes num tom mais humorístico, sobretudo nas duas primeiras novelas, outras vezes num tom mais dramático, sobretudo na última história, os autores abordam temas muito sérios das nossas sociedades.

Mais que isso, tratam temas que partilhamos e que inevitavelmente surgem quando nos relacionamos. O racismo e os lugares comuns sobre populações e locais estão lá. A tensão entre a sociedade machista e um feminismo que tenta despontar também pode ser lida. As memórias que desenterram conflitos passados que precisam de ser pacificados têm igualmente o seu lugar. A fama e reconhecimento e o anonimato também ali se leem.

Percorrendo estes tópicos, os autores caminham por entre os trilhos que nos ligam e separam, dentro dessa lusofonia que pretende que nos entendamos e de alguma forma consigamos aplaudir em Portugal esta obra em português, rececionada como intrínseca apesar da sua criação extrínseca – os autores, um moçambicano e um angolano.

Mas que mensagem fica que todos nós podemos ler? Uma única conclusão: o amor salva, o ódio mata. A proposta é que pensemos as nossas sociedades, sabendo que cada vez que abordamos temas como o racismo, o machismo, o feminismo e os fantasmas das nossas memórias, só o amor nos pode salvar e fazer ultrapassar os obstáculos.