Considero-me uma pessoa de esquerda porque acredito que os seres humanos são todos mais iguais que diferentes (quem não concordar com esta definição, e não tiver capacidade para aceitar que esta é a definição que vai ser usada neste texto, pode parar de ler agora).

Assim, numa sociedade bem ordenada, não pode acontecer que alguém considerado “o melhor” tenha privilégios milhões de vezes superiores ao considerado “o pior”. A magnitude das diferenças naturais entre os seres humanos não justifica essas discrepâncias, só possíveis por distorções económicas e sociais.

A partir daqui, trata-se de encontrar os sistemas económicos e sociais que mais equilibrem os seres humanos, nas suas diferenças e similitudes.

Na prática, o sistema que mais tem conseguido fazer essa aproximação é a social-democracia, nascida na Europa no pós-Segunda Guerra Mundial.

É um sistema que permite a liberdade económica através do capitalismo de mercado, equilibrado por uma forte presença do Estado (nomeadamente na saúde, educação, segurança social, defesa e justiça) que, através de impostos progressivos, discriminação positiva dos desfavorecidos e regulamentação do trabalho e da concorrência económica, permite que as diferenças de nascença não se acentuem demasiado, nem que as sortes da vida ditem excessivamente o percurso de cada um.

É um sistema de partilha de riscos e sortes, em que se deve tirar a quem é favorecido, e redistribuir por quem tem menos.

Os países no mundo que vivem nessa social-democracia evoluída (Dinamarca, Finlândia, Noruega, Nova Zelândia, Islândia) são, também, os mais felizes – a investigação empírica demonstra-o insofismavelmente.

É essa a esquerda em que me revejo, é essa a esquerda que defendo.

Ora acontece que, desde a queda do bolco do “socialismo real”, houve uma guinada ideológica para a direita no mundo ocidental, procedendo-se a uma progressiva desregulamentação dos mercados, a uma financeirização da economia e a uma retirada do poder do Estado (logo, da democracia).

De tal forma isto foi assim, que os partidos da social-democracia, que sempre foram do centro/centro-esquerda, se não alinhassem na lógica neoliberal passavam a ser vistos como perigosos extremistas de esquerda.

Em Portugal, essa paranóia é exibida, paradigmaticamente, pelos iludidos da Iniciativa Liberal que vêem socialismo em todo o lado, e que contagiaram a direita com esse refrão do socialismo, destruindo a possibilidade de uma conversa política sã.

Se alguém se opõe ao neoliberalismo, ou denuncia a já referida viragem ideológica à direita do mundo ocidental após os anos 80 do século XX, logo surgem impropérios, misturados com as palavras “Venezuela”, “Coreia do Norte”, “Cuba”, “comuna”, “comunista”, “socialista”, “ditador”, “canibal”. Nos casos mais patológicos, podem chegar ao “devorador de criancinhas”. E dizem que Portugal, por ter no Governo um partido com a palavra maldita, é um país socialista, quando nem sequer é socialista o Partido que tem esse nome (como já pouco é social-democrata o PSD).

A verdade é que, hoje, ser de esquerda (como defini no início) é estar do lado da liberdade, da democracia e contra todas as formas de ditadura. Das ditaduras que usurparam a palavra comunismo – para perpetuarem no poder famílias ou dinastias militares – das monarquias absolutistas como a da Arábia Saudita, ou das pseudodemocracias em que só tem poder quem é rico.

Curiosamente, muitos dos que se arvoram defensores da liberdade à direita, e se encaniçam com o diabo socialista, logo fazem um indulto quando o tema é dinheiro: seja de Angola, da família “dos Santos”, seja da Venezuela de Chávez (para comprar computadores), seja dos chineses (esses comunas), cujo capital é tão bem recebido pela nossa elite capitalista.

Enfim, da minha parte, estou tranquilo. Sempre defendi a democracia liberal como a conheço e o que quero é o seu aperfeiçoamento. As falhas da democracia combatem-se com mais, não com menos democracia (como agora querem os direitistas da democracia iliberal).

Para isso, precisamos de um Estado forte, mas escrutinado e transparente, e de um capitalismo concorrencial, não rentista, não monopolista e não “chupista” do Estado, e de uma política pública ajudada pela ciência. Não temos tempo para “papões”, nem para argumentações de escola primária.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.