Há duas semanas, acharia possível uma fuga de uma prisão com videovigilância utilizando uma escada nos muros?
Parecia um cenário saído diretamente de um sketch dos Monty Python, com a sua característica mistura de absurdo e crítica social.
Contudo, o recente incidente na prisão de Vale de Judeus não só provou que a realidade pode superar a ficção cómica, como também expôs as profundas fraturas no sistema judicial português, revelando uma crise que vai muito além das grades de uma única instituição.
Esta fuga, digna de um “Ministry of Silly Walks” prisional, deixou as autoridades perplexas e a nação a questionar-se sobre o estado da sua justiça.
Este evento, juntamente com a subsequente demissão do Diretor-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, Rui Abrunhosa Gonçalves, expôs as falhas sistémicas num dos pilares fundamentais da nossa democracia.
A fuga rocambolesca
A fuga ocorreu no dia 7 de setembro de 2024, envolvendo cinco reclusos da prisão de Vale de Judeus, em Alcoentre.
O incidente, digno de um filme de ação, foi registado pelo sistema de videovigilância às 09:56, mas só foi detectado 40 minutos depois, quando os presos deveriam retornar às suas celas.
Detalhes surpreendentes emergiram da investigação:
- Um “abrigo de características militares” foi encontrado perto da rede prisional, descrito como uma “trincheira escavada no chão”.
- O buraco tinha espaço para três cúmplices e a escada verde usada na fuga.
- A escada permitiu aos reclusos saltar um muro de cerca de 8 metros que circunda a prisão.
Este episódio não apenas deixou as autoridades perplexas, mas também expôs falhas sistêmicas alarmantes no sistema prisional português.
O preço da negligência
Portugal investe de forma desigual nos três pilares fundamentais do Estado de Direito: saúde, educação e justiça.
Enquanto a saúde e a educação são reconhecidas como prioridades nacionais, a justiça parece ser o “parente pobre” dos direitos fundamentais
Dados estatísticos revelam a gravidade da situação:
- Em 2022, havia 483.593 presos na União Europeia, um aumento de 1,7% em relação a 2021.
- Portugal tem cerca de 121 reclusos por cada 100.000 habitantes.
- Aproximadamente 19% dos reclusos da UE aguardam julgamento final.
- Portugal gasta apenas 72 euros por pessoa na Justiça anualmente, ficando 38% abaixo da média da Zona Euro de 107 euros.
Um sistema em colapso
As prisões portuguesas estão sem condições, sobrelotadas, sem nenhuma dignidade para os reclusos, com falta de pessoal.
Esta realidade sombria não é apenas um risco para a segurança pública, mas também um obstáculo à reabilitação e reinserção dos reclusos na sociedade.
A sobrelotação é um dos problemas mais graves e persistentes do sistema prisional português.
Quase 70% das prisões portuguesas estão com lotação de alto risco.
As celas são coletivas e exíguas, com muitos reclusos a disporem de menos de 3m² de espaço individual, o que viola as recomendações internacionais.
Esta sobrelotação não só compromete a dignidade humana dos reclusos, mas também aumenta o risco de conflitos, dificulta a implementação de programas de reabilitação e sobrecarrega os já escassos recursos humanos e materiais.
A fuga de Vale de Judeus revelou falhas graves de segurança, desde torres de vigia desativadas até falta de pessoal para monitorizar câmaras de vigilância.
O caminho para a reforma
Para reverter esta situação alarmante, são necessárias medidas urgentes:
- Aumento Significativo do Investimento: Elevar o gasto per capita na justiça para, no mínimo, a média da Zona Euro.
- Modernização das Infraestruturas: Investir em tecnologia de ponta para segurança prisional e eficiência dos tribunais.
- Valorização dos Profissionais: Atualizar as tabelas de honorários e melhorar as condições de trabalho dos profissionais da justiça.
- Transparência e Comunicação: Implementar estratégias de comunicação eficazes, incluindo a criação de gabinetes de imprensa especializados nos tribunais.
- Literacia Jurídica: Promover programas de educação pública sobre o sistema judicial e os direitos dos cidadãos.
- Redução da Sobrelotação: Implementar medidas alternativas à prisão para crimes menos graves e investir em programas de reabilitação eficazes para reduzir a reincidência.
O ataque aos advogados e ao segredo de justiça
Outro dos temas relevantes da semana foi a audição da Procuradora-Geral da República (doravante, PGR), Lucília Gago, na Assembleia da República.
A Procuradora-Geral abordou a questão das violações do segredo de justiça, sugerindo que algumas denúncias poderiam ser estratégias das defesas dos arguidos.
Estas declarações da Procuradora-Geral da República na Assembleia da República não só são incompreensíveis, mas também constituem um ataque direto aos advogados e aos seus clientes.
A questão é simples: ou há crime de violação do segredo de justiça ou não há.
Se há crime, deve ser rigorosamente investigado, independentemente de quem seja o autor.
Não se pode sugerir que a denúncia de uma violação do segredo de justiça seja uma manobra dos arguidos para se vitimizarem.
Esta postura parece mais uma tentativa de desviar as atenções de situações problemáticas que têm ocorrido na justiça portuguesa.
O que se pretende é clareza: se há crime, que seja investigado; se não há, que se assuma isso.
Mas insinuar que a denúncia de um crime serve para beneficiar os arguidos é não só incompreensível, como também mina a credibilidade do sistema judicial e ataca o próprio direito de defesa.
Conclusão
A justiça portuguesa está à beira de um colapso silencioso.
A fuga de reclusos, a demissão do Diretor-Geral, a sobrelotação crónica e a crescente desconfiança pública são sintomas de uma crise profunda.
É imperativo que a sociedade portuguesa reconheça a justiça como um pilar tão fundamental quanto a saúde e a educação, em matéria de investimento.
Só com um investimento substancial e uma reforma abrangente poderemos aspirar a um sistema judicial que não apenas faça justiça, mas que seja visto a fazê-la, restaurando assim a confiança dos cidadãos nas instituições que são o alicerce da nossa democracia.