Que os tempos que se vivem são inéditos, estamos todos de acordo. Que qualquer semelhança com algo conhecido só encontra espaço na ficção, é também unânime. Da história e das pestes antigas, sabe-se que nunca o contágio foi tão intenso, mas também, à época, o mundo não era uma ervilha.

Outra constante desta actualidade bizarra é a insanidade comportamental das pessoas e das organizações. Porventura pela memória do passado recente da crise do subprime, da austeridade e da falência da economia, assiste-se a um actuar desaustinado e desacertado. Ora são ofertas de serviços de advogados por quem o não é, e assim comete crimes, nomeadamente procuradoria ilícita e usurpação de funções. Ora são empresas a cortar salários e subsídios aos trabalhadores após consultas na internet.

A ambição de tantos, e objectivo de outros, ser capa de revista, entrevistado em horário nobre ou constar da lista da Exame das Melhores, cai por terra ante tanto amadorismo.

A preocupação e angústia das organizações é perfeitamente compreensível. A necessidade de alterar orçamentos e construir planos B, C e D, um imperativo de boa gestão. Mas não podem rasgar os manuais de conduta internos, as boas práticas e as leis da República. Não se podem alterar contratos de trabalho com efeitos retroactivos. Nem eliminar subsídios. Nem esgotar os 22 dias de férias durante o estado de emergência e sem pagamento do correspondente subsídio. Ou inventar acordos inexistentes que até deixam a nu fragilidades da organização interna.

Mais do que nunca são necessários empresários e dirigentes profissionais, entendendo-se como tal os que actuam com profissionalismo. Ou seja, que, como diz o povo, sabem da poda, e, ainda, têm qualidades pessoais que reforçam a liderança, como é a empatia, o conhecimento, a serenidade e a confiança. Se das adversidades podem surgir oportunidades, também poderão advir grandes desgostos.

Quem muito poderia ganhar, nesta época prenhe de peculiaridades da gestão, seriam os sindicatos. Não só a conquistarem novos filiados, como a aconselhar os trabalhadores, chamar as empresas à realidade e apoiar o caminho da construção e da sustentabilidade. Mas a redução do sindicalismo ao desconfinamento especial do 1º de Maio com laivos de saudosismo do PREC, nada conquista ou convence.

Resta a expectativa de um funcionamento exemplar da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), raro e fugaz nos últimos anos, com o depauperamento dos seus quadros. Sabemos, porém, que já está a requisitar juristas de múltiplos serviços. Esperamos que se não destine apenas a inspecções para aferir da conformidade do lay-off e que afiram, sim, da conformidade da observação da lei laboral em todos os planos. Quiçá, perante o objectivo de recuperação do orçamento público, com o resultado da aplicação e cobrança das coimas, se regenere a tão necessária ACT.

E aos gabinetes dos recursos humanos, onde uns curiosos sinistros, de formação não jurídica, se quedam a googlar e perorar interpretações legais, lembramos que têm sorte por as coimas não lhes serem extensíveis. Mas ainda assim, cometem o crime de procuradoria ilícita e no exercício das suas funções, o que pode configurar justa causa para o seu despedimento…

O fenómeno da pandemia e o pânico da recessão e incumprimentos, com o pavor das insolvências, não pode justificar a perda da dignidade e da integridade das organizações. A reputação leva uma vida a construir e segundos a desfazer. Para que a pandemia não se transforme em histeria económica e atropelo de direitos e regras, há que ponderar e ser criterioso.

E, já agora, consultem o advogado, antes de embarcarem em soluções instantâneas que vão trazer seríssimos problemas. O vírus não consome a ética, nem o devemos consentir, ignorar, ou usar como desculpa para justificar o injustificável.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.