Terá sido Karl Marx a avisar que a História ocorre  primeiro como tragédia e depois como farsa. Verdade ou não, a realidade confirma a citação e em alguns casos vai mais longe. No caso das vacinas passámos da tragédia à farsa e desta directamente para a pantomina.

Primeiro foram os casos de autarcas em Reguengos de Monsaraz, Arcos de Valdevez e Seixal, e depois de funcionários da Segurança Social em Setúbal. Tudo em registo de “chico-espertice” generalizada, com alegações de que se trata de autarcas e funcionários públicos que estão na “linha da frente” e devem ser protegidos, quando uma simples avaliação da situação permite concluir que estão tanto em risco como qualquer um de nós confinados em casa. Com a escassez de vacinas e a pandemia pior que nunca os casos são trágicos…

Mais recentemente, já em verdadeiro clima de farsa, foram vacinados  os funcionários de uma pastelaria, que por sinal funciona ao lado da delegação regional do Norte do INEM, e o dono de um restaurante, “especializado em francesinhas” (diz a reportagem), também perto do INEM, onde, por coincidência, confirmou um dos técnicos, “nós vamos comer há muito tempo todos os dias”.

Neste caso, a situação que determinou a autodemissão do director do INEM (haja alguém…), veio embalada com a justificação de que as vacinas estariam em vias de ficar inutilizadas. Não que a ideia do aproveitamento das vacinas em risco de inutilização seja má. O que é mau é imaginar que para se resolver o problema se convidam os amigos ou conhecidos para, em jeito de favor, as despachar.

No intervalo, o responsável pela task force (o que quer que isto signifique) que executa o plano de vacinas anti-Covid, confrontado com a batota, veio dizer duas coisas: “o sistema está montado para vacinar as pessoas, não para procurar batoteiros”, e não é “imoral”, ao contrário do que pensam os eleitores que “têm espírito vingativo”, como os de André Ventura, dar a segunda toma da vacina a quem tomou a primeira abusivamente. Não entendi. Provavelmente porque não sou eleitor de André Ventura.

Por fim, a farsa evolui para a mais sofisticada pantomina com a ideia da vacinação imediata dos políticos. Desde logo, os deputados da Assembleia da República, iniciativa que começou logo por gerar o vai e vem natural de quem não sabe se deve privilegiar o interesse público ou o interesse privado, jogo de mímica em que alguns se mostraram exímios.

O mesmo jogo de sombras transitou para o Governo, sem que se soubesse como e porquê deveriam eles ser vacinados agora com carácter prioritário. A última cena coube ao Presidente da República, que sabe muito bem o que é o interesse público e se preocupa com a imagem dos políticos, que avisou: “ninguém de bom senso quereria passar centenas ou milhares de cargos políticos ou funcionários, de supetão  à frente de milhares de idosos com doenças mais graves”. Mas parece que é isso que na realidade se quer fazer.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.