Não quero entrar em detalhes jurídicos, até porque direito e processo penal é ciência que não cultivo. A visão que vou dar é a de um cidadão que também é advogado e que acredita no Estado de Direito. Ora, acreditar no Estado de Direito é confiar nas regras instituídas, nos princípios gerais de direito e nas instituições.

Não se pode é deixar de confiar nesses institutos só porque a resposta aos problemas concretos não é aquela resposta preconceituosa que a generalidade das pessoas espera. Preconceito induzido pela sistemática fuga do segredo de justiça, normalmente por quem tem o especial dever de o proteger, e pelos media, no cumprimento do seu dever de informar e na liberdade, não absoluta, de imprensa.

As sentenças judiciais são um epílogo de um processo, de um conjunto de actos sequenciais, regulados por regras e por princípios jurídicos, que visam a descoberta da verdade material, no respeito escrupuloso dos direitos do arguido, à cabeça dos quais se ergue o princípio da presunção de inocência do arguido até ao trânsito em julgado da sentença condenatória.

Esta presunção tem um efeito jurídico fundamental: a inversão do ónus da prova para quem imputa factos criminosos a um dado sujeito. Qualquer cidadão goza desta presunção, mesmo o ex-primeiro ministro Sócrates.

Por isso vivo mal com medidas de coação de suspensão de cargos profissionais – que no caso concreto significa, as mais das vezes, a perda dos mesmos e da sua remuneração, ou com apreensões judiciais e arrestos preventivos na fase da investigação, com tudo o que isso pode implicar para os cidadãos e suas famílias. Qualquer pessoa é presumida inocente e as medidas de coação têm de ser proporcionais.

Não queria viver num Estado persecutório em que os cidadãos tivessem de provar que não praticaram crimes há um, 10 ou 15 anos. Compete ao Estado, pela sua força desproporcionada à da generalidade dos cidadãos, se considerados individualmente, alegar e provar os factos criminosos que imputa a um qualquer cidadão.

E compete-lhe provar para além de qualquer dúvida razoável. In dubio pro reu!

Odeio a figura da delação premiada, numa sociedade em que a inveja é quase cultural e a figura do enriquecimento ilícito, com a inversão do ónus da prova.

Não bastam indícios, conspirações, efabulações ou simples coincidências. Não gosto da muito usada técnica de investigação do “follow the money” para iniciar, e concluir, uma investigação, de se iniciar uma campanha nos media de estigmatização de certo individuo e da acusação sem prova. E ainda gosto menos da devassa das escutas sem escrutínio ou fundamento. E não percebo os mega processos onde um arguido “menor” pode ser destruído económica e socialmente.

E não me venham dizer que quem não deve não teme. Foi uma conquista da civilização democrática que estas intromissões do Estado leviatão devem ser mínimas, fundamentadas, autorizadas previamente e controladas por um juiz independente e garante dos direitos dos cidadãos e não dos poderes dos investigadores.

O juiz de instrução é o juiz das liberdades e não o endossante dos direitos da investigação.

Sou daqueles que prefere 100 culpados em liberdade do que um cidadão inocente injustamente preso.

E no caso concreto não concebo que uma pessoa que vivendo num país europeu, sabendo de um processo crime que corria contra si – e a fuga de informação tinha uma autoria conhecida – decide de livre vontade regressar a Portugal para se submeter à investigação, seja preso preventivamente por, pasme-se, perigo de fuga. Se o ex-primeiro-ministro estivesse a embarcar para um país sem tratado de extradição ainda percebia… Não foi o caso…

De igual modo, a figura da prescrição dos crimes serve um objectivo fundamental que é o da certeza do direito e da segurança jurídica, valor jurídico da mesma natureza do valor da justiça.

As pessoas não podem viver durante 10 ou 20 anos a ser investigadas, enlameadas na sua honra e reputação, com prejuízos profissionais irreversíveis, muitas das vezes sem ser proferida uma acusação, uma acusação sólida e provada, ou em muitos casos com uma absolvição.

Concordo com o critério publicado pelo Daniel Oliveira: todos nós temos a obrigação de nos colocar na pele do arguido. Pode ser objecto de escutas, de buscas, de prisão preventiva e outras medidas de coação.

Recentemente, houve casos de juízes do Tribunal da Relação que foram constituídos arguidos, médicos que no exercício da sua profissão praticaram actos indiciariamente criminosos, advogados que foram arrastados por crimes – que ignoravam sem culpa – dos seus clientes, engenheiros que viram acidentes de trabalho mortais na sua obra por inobservância ou não das regras de segurança, proprietários de restaurantes que empregaram trabalhadores estrangeiros sem as necessárias autorizações para trabalhar, o empresário que teve de escolher entre pagar ordenados ou pagar impostos e optou pelo primeiro dever, na fé de que o negócio libertará fundos para mais tarde pagar os impostos, o mediador imobiliário que não cuidou de saber a origem dos fundos do seu cliente, o superior hierárquico que foi acusado de assédio moral, e o comum cidadão que se esqueceu de declarar rendimentos e que será furiosamente perseguido pela prática do crime de fraude fiscal, etc…

Isto não é um problema dos outros. Dos maus e dos culpados. Pode ser de cada um de nós e inocentes! Ninguém está livre de ser perseguido injustamente pela máquina repressiva do Estado. São precisas as regras, os princípios gerais do direito e as instituições cegas e independentes.

Em síntese, prefiro 100 juízes Ivos Rosas, que se engana, do que um Juíz acrítico da actuação das polícias e do Ministério Público!

E não concordo com a tese da contagem do tempo da prescrição a partir da promessa de vantagem e não, como deveria, do facto continuado e a partir da sua consumação, nem com a tese peregrina da aplicação do princípio fundamental do direito sacrossanto de não auto-incriminação à omissão intencional de declaração de rendimentos ilícitos.

Para isso, para a revisão destas decisões de interpretação e aplicação das normas penais, temos os Tribunais superiores e, por fim, o tribunal constitucional.

O Juiz decidiu, está decidido. E até ser revisto por um tribunal superior o direito está correctamemte aplicado. Quando transitar em julgado a decisão final é a correcta, contanto tenham sido respeitados os princípios fundamentais do direito. O direito serve para regular a vida em sociedade e limitar o poder absoluto do Estado perante as liberdades fundamentais dos cidadãos. Mesmo as de Sócrates.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.