Foi apresentado recentemente (i.e. no final do passado mês de maio) o anteprojeto de Lei referente à transposição para a lei portuguesa da Diretiva (UE) 2018/822 do Conselho de 25 de maio (”Diretiva”), a qual contempla o regime de comunicação de determinados mecanismos transfronteiriços por parte de intermediários (i.e. entidades que concebam, comercializem, organizem ou disponibilizem para aplicação ou administrem a aplicação de um mecanismo suscetível de comunicação) e contribuintes que incorporem determinadas características que possam ser suscetíveis de existirem práticas abusivas de planeamento fiscal. Foi ainda possível de constatar que o legislador português optou por incluir igualmente as operações de índole nacional e com isso propor a revogação do Decreto-Lei n.º 29/2008, de 25 de fevereiro, passando a existir um único diploma legal que regula toda a temática de reporte de operações de planeamento fiscal.

Muito se tem discutido desde então sobre o potencial impacto desta nova regulamentação no panorama da fiscalidade em Portugal e na União Europeia, dado que parece que a mesma aponta para estarmos perante mais uma medida que se pode enquadrar como “big brother” fiscal. Contudo, esta nova regulamentação tem características singulares, pois assenta numa obrigação de comunicação nominativa (i.e. identifica de forma objetiva o beneficiário do mecanismo) perante a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”).

Como nota prévia, importa antes de mais referir que a obrigação ou não de comunicar junto da AT residirá na verificação de um conjunto de características-chave que sejam identificáveis em determinados mecanismos e, em alguns casos, conjugado ainda com a satisfação do denominado teste do benefício principal.

De facto, passando a existir uma obrigação desta natureza na ordem jurídica interna, poderá ser entendido que estaremos a caminhar para um regime que poderia ter algumas semelhanças ao da delação premiada, como existe, por exemplo, no Brasil, em sede criminal, no âmbito no qual quando se identifica alguém que terá potencialmente cometido uma infração, tal facto pode funcionar favoravelmente na esfera do delator, designadamente, a redução da pena a que o mesmo poderia estar sujeito.

Contudo, não é manifestamente o caso que resulta da transposição desta Diretiva (DAC 6). Não existe qualquer “prémio” por existir uma comunicação por parte do “delator”. Ao invés, existe sim, um regime sancionatório suficientemente dissuasor para quem não cumprir com esta obrigação de comunicação, o qual, à partida, envolve coimas que poderão ir até um valor máximo de 80 mil Euros, isto com base no estipulado no aludido anteprojeto de lei.

Nunca é demais referir que esta Diretiva já se encontra em vigor (i.e. 30 dias após a respetiva publicação, ou seja, desde o dia 25 de junho de 2018) e por isso durante este período transitório, que irá decorrer até ao dia 30 de junho de 2020, será necessário que os intermediários e contribuintes possuam um repositório de mecanismos transfronteiriços suscetíveis de comunicação, pois os mesmos serão já obrigatoriamente objeto de comunicação até ao dia 31 de agosto de 2020. O mesmo sucederá para os mecanismos de natureza doméstica, sendo neste caso o horizonte temporal mais reduzido, ou seja, desde a data da publicação do diploma final que fará a transposição da Diretiva, até ao dia 30 de junho de 2020, sendo os mesmos igualmente reportáveis até ao dia 31 de agosto de 2020.

Já anteriormente escrevi que existem alguns aspetos que esta nova regulamentação traz que podem ser manifestamente exagerados, desde logo a potencial existência de litígios comerciais (e reputacionais) entre o intermediário e o contribuinte, nomeadamente por poderem existir entendimentos díspares sobre a necessidade e/ou obrigação de comunicação de determinado mecanismo junto da AT.

No entanto, a opção do legislador passou por criar um regime, em prol de uma (alegada) maior transparência sobre a atividade económica desenvolvida pelos contribuintes, que passa por obrigar os intermediários que com eles colaborem a comunicar determinados mecanismos que, ainda que legítimos e que sejam economicamente admissíveis, possam ter uma vantagem fiscal (que pode não ser a principal, bastando ser uma das principais) e com isso criar uma ideia que tal operação pode ser vista, potencialmente, como abusiva. Conjugando isto com o regime sancionatório, será expectável que os intermediários acabem por utilizar uma postura prudente na avaliação dos mecanismos a reportar junto da AT.

Aparentemente, os fins justificam os meios e na ausência de uma resposta cabal por parte dos Governos em combater de forma assertiva as práticas de fraude e evasão fiscais, acaba-se por criar um regime generalista em que se colocam terceiros a funcionarem como delatores em benefício dos Estados.

Por isso será legítimo questionar se estaremos a chegar a um ponto em que a transparência pode estar num plano excessivo? Uns dirão que estaremos a ultrapassar os limites e outros acabarão por aplaudir as medidas agora tomadas.

Uma coisa é certa: o futuro encarregar-se-á de responder se esta medida surtirá o efeito pretendido.