“Falar, genericamente, de ‘tecnológicas’, quando falamos de despedimentos e crise, é uma abordagem falaciosa. O problema não está no setor, mas antes num grupo de empresas que pela sua estrutura frágil, assente em mera especulação, acabam por minar todo um ecossistema.”

Quando Lipovetsky, em 1983, escrevia a “Era do Vazio” e analisava a perda de importância da esfera pública, bem como das suas instituições coletivas (sociais e políticas), que vai cedendo perante a emergência do individualismo de tipo narcísico e hedonista, naquilo que seria uma “segunda revolução individualista”, estaria ele a olhar para a atualidade que se lhe apresentava ou estaria a relatar aquilo que na altura era futurologia, mas é hoje uma indubitável realidade?

Não me canso de dar este exemplo, por me parecer cada vez mais atual. Quase como um escrito premunitivo que deixa adivinhar um cenário que aos olhos da maioria é esquizofrénico, mas que é tão claro como a água.

Ainda assim, este individualismo, ao contrário do que dizia Lipovetsky, não se projeta apenas nos indivíduos; projeta-se igualmente nas organizações e instituições. Podíamos até apelidar o contexto em que vivemos de Era do Milhão, tal é a megalomania “Midalónica” de querer transformar em ouro tudo o que o empreendedor toca, ou a vontade de procurar legitimar todas as atitudes, ações ou opiniões através da individualidade da sua liberdade, argumentado que o resto é mera paisagem ou uma espécie de zombielândia.

Ora, esta pode muito bem ser o cerne da explicação para este recente efeito dominó no mundo dos unicórnios, decacórnios e startups, que anunciam, uma atrás da outra, despedimentos coletivos e constantes rondas de investimentos para recapitalização. Segundo o tracker Layoffs.fyi, à data da redação deste artigo, 333 startups tinham despedido um total de 51.789 trabalhadores. Uma extensa lista de empresas, onde se destacam a Klarna, a luso-sueca Remote ou a eToro.

Aquilo que qualquer um diria é que a vontade de ganhar dinheiro, de desenterrar o último ovo de colombo, leva a que as avaliações e as rondas de investimento ultrapassem o limite do razoável, como se estas empresas estivessem sempre alicerçadas em castelos de cartas, prestes a colapsar ao primeiro sopro de uma qualquer criança embirrenta que, batendo numa piñata, descobre que no seu interior não há muito mais para além de ar.

Ainda assim, e para que não haja mal-entendidos, há que analisar o panorama sob duas perspetivas diferentes: do ponto de vista dos Recursos Humanos e do ponto vista financeiro. Não faz qualquer sentido generalizar ou extrapolar o atual cenário para um contexto macro, em que, sem critério, se diz que as tecnológicas atravessam um calvário.

A Bosch, a Capgemini e a Critical são exemplos contracorrente, assim como a Evolution (e aqui confesso que beneficio de uma experiência muito pessoal). A dificuldade em contratar para determinadas áreas é um desafio diário das equipas de recrutamento. Mas se ainda assim não estivermos convencidos, um estudo divulgado em junho, desenvolvido pela Mercer, diz que “67% das empresas de TI e Telecomunicações têm intenção de crescer durante o presente ano e querem reforçar as suas equipas com mais colaboradores”.

Já do ponto de vista financeiro, se olharmos para as maiores tecnológicas do mundo, a conjuntura atual só veio ajudar a consolidar os resultados. E apesar do impacto verificado durante os dois anos de pandemia, empresas como a Apple, que anunciou receitas na ordem dos 378,35 mil milhões de dólares, em 2021 (em contraponto com os 294,1 mil milhões de dólares registados em 2020); a Samsung, que cresceu 18,1%, para os 232,8 mil milhões de dólares de receitas; ou até mesmo a Evolution, que na sua configuração ainda de startup, atingiu 1,24 mil milhões de euros, o que representa mais de 90% de crescimento em comparação com o ano anterior, são o reflexo de uma realidade diferente daquela que temos lido nas últimas semanas.

Parafraseando Daniel Zhao, economista sénior da Plataforma Glassdoor: “os layoffs parecem ser específicos em empresas que estão em situações financeiras mais frágeis, que não sendo lucrativas ou esgotando o financiamento, não têm condições de continuar a operar, a não ser através de financiamento adicional”.

Falar por isso de tecnológicas, quando falamos de despedimentos e crise, é uma abordagem falaciosa. O problema não está no setor, mas antes num grupo de empresas que pela sua estrutura frágil, assente em mera especulação – naquilo que poderão vir a ser, ou representar – acabam por minar todo um ecossistema.

Um pouco à imagem de uma qualquer pop star, com uma ascensão meteórica, mas com uma queda ainda mais supersónica, que por não conseguir corresponder às expectativas dos seus fãs, ou porque o seu reportório é curto, não tem qualidade suficiente para entregar aquilo que o mercado espera dela.

Para se ser um artista internacionalmente reconhecido não basta compor um êxito e vender a ideia que, a seguir ao primeiro grande sucesso virão mais composições brilhantes. Da mesma forma, para ser uma empresa bem-sucedida não basta ter uma avaliação de cinco mil milhões e trabalhar para incrementar esse valor sem entregar qualquer produto acabado.