Quando o ator Rutger Hauer faleceu na semana passada, muitos não tardaram em evocar a sua interpretação mais icónica na pele do replicante Roy Batty, no filme “Blade Runner” de Ridley Scott (1982). Numa daquelas estranhas ironias de vida, o ator acabaria por falecer no mesmo ano que a sua personagem, uma vez que a ação do filme decorre em 2019.

Mais de 35 anos depois, o solilóquio de Roy Batty à chuva resiste ao teste do tempo e deslumbra-nos com o seu mistério e beleza. Um não-humano reflete nas suas experiências de guerra na galáxia e partilha as suas memórias num tom pausado e melancólico. Nem sabemos ao certo se essas memórias são reais ou plantadas, mas não interessa porque a emoção associada a essa experiência humana é o suficiente para Batty lamentar a hora prematura da sua morte.

Batty e os restantes replicantes são máquinas sofisticadas a quem foi cometida a irresponsabilidade de receber o dom (incompleto) de Humanidade, mas não a experiência humana total. É pois na ânsia da totalidade dessa experiência que os replicantes fogem da sua escravatura nas colónias espaciais e partem em busca do seu criador para lhe exigir mais vida – um desejo impossível de alcançar, que é também a falha fatal de quem criou.

De certa forma, a personagem de Batty é uma recriação futurista do monstro de Frankenstein. O monstro criado pelo cientista afunda-se num profundo ressentimento e ódio pelo seu criador, por este lhe ter dado um vislumbre de Humanidade, a qual, vem ele a descobrir, lhe está irremediavelmente vedada. Tal como Batty lamenta a perda da sua experiência humana, também o monstro lamenta, o facto de nunca mais ir ver o sol ou as estrelas ou sentir o vento no rosto. Ambos ganham plena consciência de que são criaturas condenadas e não conseguem perdoar aos seus criadores por lhes terem oferecido a incompletude.

Por mais que estas ideias sejam romantizadas na literatura e no cinema, preparam o terreno para uma reflexão sobre identidade e as implicações morais e filosóficas da nossa relação com a tecnologia.

Por exemplo, embora a previsão de “Blade Runner” para 2019 fosse otimista em relação aos nossos progressos na ciência e exploração espacial, falhou numa questão essencial. Ao passo que a máquina está escravizada ao serviço do Homem no filme, no mundo de hoje a máquina é encorajada a aprender cada vez mais rápido o funcionamento do cérebro humano. Mais. A absorver o modus operandi do ser humano para assim se aperfeiçoar. Novos projetos já permitem que máquinas reconheçam emoções num rosto e é uma questão de tempo até que os algoritmos consigam decifrar o nosso estado emocional, o que provavelmente fará com que a nossa dependência tecnológica atinja novos patamares.

A jornada emocional de Roy Batty alerta para a irresponsabilidade e crueldade de criar algo imperfeito que escapa ao nosso controlo e que se vira contra nós. O facto de parecer tão futurista pode fazer-nos esquecer que há um alerta subjacente. Talvez fosse importante que o nosso rápido progresso em machine learning fosse igualmente acompanhado de uma visão além do puramente mercantilista e refletisse sobre o grande arco moral, ético, filosófico e sociológico das nossas proezas como criadores.