A principal causa apontada para a emergência dos populismos, e para o divórcio entre eleitores e o sistema, é o alheamento que alguma da classe política instalada tem revelado quando se trata de matérias que exigem o envolvimento e a participação de todos.

Não é mais sustentável que os partidos políticos saiam à rua em campanha à caça do voto popular a cada quatro anos, e voltem ostensivamente as costas a esses mesmos eleitores no período entre eleições. Pior, que considerem que o povo que lhes confiou o voto não estará à altura de decidir as grandes questões que interferem directamente com os temas fundamentais da sua vida.

O comportamento de uma parte significativa da nossa classe política face à eutanásia, ou morte a pedido, é um exemplo paradigmático disto mesmo. Sem pudor, ou réstia de dignidade, os militantes das causas fracturantes querem impor ao país a morte a pedido, sem para isso estarem investidos do indispensável mandato político.

Apenas o PAN e o BE sufragaram a eutanásia nos seus programas eleitorais, significando que 80% dos eleitores não tiveram esta questão em conta ao votar, e que, dada a importância fundamental do tema, nenhum dos outros partidos está politicamente legitimado para decidir nesta matéria, a não ser, dando a palavra ao povo.

Com evidente autoritarismo, uma maioria conjuntural não mandatada ou legitimada democraticamente nesta matéria, resolveu avançar obstinadamente com o processo legislativo para legalização da morte a pedido.

Os projectos de lei, agora reunidos numa única versão, foram todos rejeitados pela esmagadora maioria dos especialistas ouvidos em audição pela Assembleia da República, incluindo a Ordem dos Médicos, através de todos os Bastonários vivos, a Ordem dos Advogados, a Ordem dos Enfermeiros e, muitíssimo importante, a Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Também 15 professores catedráticos de Direito Público consideraram que esta medida era inconstitucional!

Acresce a oposição aberta e clara de importantíssimas organizações do sector social e da saúde, que são sustentáculo daquilo que conhecemos como estado social, como a Associação Nacional de Cuidados Paliativos, a União das Misericórdias Portuguesa, a Cáritas, e os maiores grupos de saúde sociais e privados.

Um processo, no mínimo, questionável. Uma pressa inexplicável para impor uma lei profundamente impactante, sem o necessário consenso social. O uso da essência humana para patrocinar o divisionismo e a fractura. Tudo absolutamente lamentável. Tudo a envergonhar as instituições, por obra daqueles que revelam não estar à sua altura.

Entretanto, a sociedade reagiu e fez-se ouvir. A petição dos portugueses que exigem um referendo sobre a eutanásia é a mais forte desde que há memória. Num tempo record, mais de 95.000 portugueses fizeram questão de lembrar ao poder político que, não só não o mandataram para legislar sobre a morte a pedido, como fazem questão de ter uma palavra a dizer directamente sobre esta questão fundamental nas suas vidas.

Gozam as instituições, neste momento, de credibilidade suficiente para voltar as costas a quase 100.000 portugueses que fizeram questão de manifestar a sua vontade? Será a recusa da palavra ao Povo um bom serviço à Democracia? De que terão medo, afinal, os militantes da morte a pedido? Porquê o agendamento apressado para amanhã, em pleno pico pandémico, e crise generalizada, desta matéria tão importante, depois dos seus promotores terem garantido que não haveria pressa?

Os populismos, a promoção de ideias de índole totalitária, a polarização violenta da sociedade, não aparecem por geração espontânea; são sempre resposta a um problema do sistema e aproveitamento de uma oportunidade criada pelo próprio establishment. Em regra, surgem quando a deterioração do elo de confiança entre eleitores e eleitos se encontra em decomposição.

Em democracia, a culpa não é do povo, é de quem não sabe interpretar a sua vontade, revelando não estar à altura da sua confiança. Amanhã, dia 23 de Outubro de 2020, é um dia fundamental para a Democracia, o poder do Povo, pelo Povo e para o Povo. Veremos quem está à altura das suas responsabilidades.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.