António Costa, no campo da manobra política, é um actor hábil, geralmente eficaz e notoriamente agressivo; tem o killer instinct que muitos apreciam na arte. Curiosamente, estas caracteristicas só se revelam quando a maré lhe é favorável e o vento de feição. Mal as circunstâncias se revelam adversas, e Costa se vê desmascarado na sua circunstância, o tom muda, o humor indispensável esvai-se, a educação esfuma-se e o verdadeiro carácter revela-se.

Tem sido assim em quase todos os debates quinzenais com Assunção Cristas; uma clara antipatia mútua conduz a uma crispação pouco bonita de se ver, à submerssão dos argumentos, por melhores que sejam, ao ataque pelo ataque. Ninguém ganha, Costa sai pior porque, apesar de todas as quotas e discursos correctinhos, ninguém gosta de ver uma senhora ser maltratada gratuitamente.

Em democracia, o escrutínio ao exercício do poder é normal e desejável. Costa e os seus, convivem muito mal com este escrutínio, na sua postura de donos e senhores do Estado. Se as perguntas incómodas de Cristas nos debates quinzenais, ficavam por ali mesmo e não sobreviviam à brutal máquina de comunicação socialista, limitando a exasperação intolerante e pouco racional do primeiro-ministro a uns breves takes nos noticiários do dia, o mesmo não se passou com a revelação do familygate em toda a sua monstruosa dimensão. Perante a dimensão e evidência do escândalo, Costa perdeu completamente a cabeça e a habilidade que o caracteriza.

Do recato do discreto apartamento da Lapa, Cavaco Silva, homem de longa e implacável memória, emerge do silêncio e serve frio um comentário letal no meio da constatação pública do escândalo socialista.

A resposta de Costa não podia ser mais grosseira e agressiva, a convocar em cada palavra o ex-Presidente para o confronto público. E conseguiu. Desde então, não há semana em que Cavaco Silva não apareça, não há semana em que Costa não seja fustigado pelo homem que, apesar de tudo, lhe leva uma considerável vantagem. Foi uma péssima manobra, esta de acordar Cavaco Silva. É ainda pior ideia, para Costa, colá-lo ao PSD em plena campanha para as europeias.

Cavaco Silva, sem a cultura ou o encanto de Mário Soares, equipara-se-lhe como “animal político”, enquanto homem que geriu sempre as suas ambições e o seu projecto pessoal de poder com rigor milimétrico e eficácia comprovada.

É verdade que os governos Cavaco deram ao país uma casta de corruptocratas, que ainda hoje pagamos com os impostos ao final de cada mês. É verdade que os governos Cavaco usufruiram da maior enchente de dinheiro desde o 25 de Abril e deixaram um país atrasado atravessado por auto-estradas. É verdade que terá havido muito favorecimento e amiguismo no tempo do poder de Cavaco. É verdade que as presidências de Cavaco foram pouco inspiradoras, pouco mobilizadoras e muito irregulares.

Por fim, mais relevante politicamente, é verdade que Cavaco teve sempre a suprema arte de parecer sempre infinitamente melhor do que as suas acções. Dos seus períodos no poder ficou a memória do homem de seriedade inquestionável, do modernizador do país, do gastador criterioso, do Presidente estável e rigoroso.

António Costa, no desespero de se ver confrontado com o seu despotismo na forma do maior nepotismo jamais visto, esqueceu tudo o que há a aprender sobre Cavaco. A guerra que empreendeu é a mais estúpida que poderia ter escolhido. Ao escolher Cavaco, Costa não cuidou que antes de repescar a realidade dos factos teria de vencer a consolidação da memória colectiva.

Nesta guerra, interessa pouco o que Cavaco fez realmente, ou permitiu que se fizesse. Nesta guerra, o que conta é a memória de Cavaco no colectivo nacional. O que o povo vê é um prevaricador acossado a insultar um senador do regime, e um ex-presidente seriamente preocupado e indignado com o regabofe de um primeiro-ministro malabarista e do seu bando. Este contraste é fatal para Costa.

A cegueira de não ter compreendido que Cavaco já não tem, nem terá cargos por que responder, que está limpo quanto ao passado na memória colectiva, que joga como poucos com a gravitas que a história que soube fazer lhe permite, é claramente o início do fim de Costa.

A impensada associação ao PSD tem resposta em todas as sondagens desde então. Costa prova que não sabe gerir contrariedades e dificuldades. Onde fazia falta humildade, cavalgam a agressividade. Onde se impunha um mea culpa, disparam sobre o adversário. Onde deveriam jurar uma caminhada em direcção à ética, escondem-se atrás da lei que não os controlou. Estão nus na praça pública, aos berros sobre as vestes dos adversários.

Quando se pensa nos escândalos dos governos de ambos, Cavaco e Costa, pode dizer-se com propriedade que, de Maio a a Abril, há pouco que rir. A questão é que dos governos Cavaco já nos livrámos nas urnas, tendo Cavaco sabido sobreviver-lhes; do governo Costa espera-se o mesmo destino, com a diferença que Costa não terá como não submergir com este.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.