Na noite de 20 para 21 de Agosto de 1968, tropas russas, acompanhadas de forças dos seus então vassalos búlgaros, polacos, húngaros e da Alemanha de Leste, invadiram a Checoslováquia, pondo um rápido fim à “Primavera de Praga”. O embaixador soviético na ONU garantia que tudo não passava de uma “ajuda fraternal” do “Pacto de Varsóvia” ao seu membro checoslovaco, mas como dizia o seu congénere americano, era a mesma “ajuda fraternal” que “Caim dera a Abel”.

Meses antes, o chefe do governo checoslovaco Alexander Dubcek resolvera introduzir uma série de reformas que “abriam” a “burocracia que estava lenta e seguramente a enterrar o socialismo”: a legalização da propriedade privada, maior liberdade de circulação, ou a abertura da comunicação social (estatal) à liberdade de expressão. Dubcek queria que “um sapateiro” ou “um barbeiro” deixassem de “ter medo de ganhar muito dinheiro”. Na Rússia, a nomenklatura tinha medo que deixassem de ter medo de falar.

A 13 de Agosto de 1968, Brezhnev suplicava a Dubcek que voltasse atrás, e depressa, pois “não resta[va] muito tempo”. A liberdade de expressão restituída, queixava-se o líder russo, “propagava” ideias “anti-soviéticas e anti-socialistas”, algo que o Kremlin não podia tolerar, acima de tudo porque nem todos em Moscovo partilhavam os seus receios.

Uma geração de jovens reformistas que iniciaram a sua vida política no consulado de Kruschev e que mais tarde desempenhariam papéis centrais na perestroika e na glasnost dos anos 80, recebiam a iniciativa do líder checoslovaco com entusiasmo. Se, como eles queriam, as leis de Praga fossem adoptadas em Moscovo, a liberdade seria usada para contestar a autoridade do PCUS, da qual (juntamente com todos os proveitos que a acompanhavam) os seus membros não queriam abdicar.

Esses shestidesiatniki, profundamente influenciados pela cultura popular ocidental, eram filhos de antigas vítimas das purgas de Estaline, e viam no “socialismo de rosto humano” de Dubcek aquilo que procuravam: uma versão mais “pura” da “Igreja bolchevique”. Não se aperceberam, lamentar-se-ia mais tarde um deles, que a própria “religião era falsa e o seu Jesus um impostor”, e quer estivessem então prontos para o compreender ou não, os tanques de Brezhnev que sufocaram Praga mostravam que o “socialismo de rosto humano” era impossível, e que o regime comunista só podia sobreviver através da repressão.

Mikhail Suslov, o homem forte do regime soviético, percebera-o bem, quando logo a seguir perguntava aos críticos internos da invasão “quem” enviaria os tanques para salvar o comunismo soviético como eles o haviam feito para preservar o checoslovaco. De facto, quando décadas mais tarde os reformistas aplicaram reformas semelhantes, ninguém enviou tanques para os parar. O resultado, no entanto, não foi o que sonharam, nem sequer uma democracia “capitalista”.

Como conta Arkady Ostrovsky no seu livro The Invention of Russia,  os shestidesiatniki, destroçados pela invasão de Praga, decidiram ficar dentro da estrutura do regime moscovita, e mudá-lo por dentro. Nos anos 80, um deles – Gorbachev – chegou ao poder, e deu-lhes a oportunidade de o conseguirem. Juntos, abririam a economia à iniciativa privada, dariam à sociedade acesso às opiniões críticas do estado do regime e, advertida ou inadvertidamente, trariam para dentro desse regime as armas da sua ruína. No final de 1991, esta estava concluída. Mas entretanto, gente mais avisada e menos escrupulosa aproveitara o tempo que passara para tomar de assalto as empresas que haviam nascido dos velhos ministérios soviéticos, usando a sua posição para se enriquecerem.

Na “nova” Rússia, Yeltsin assegurava a perpetuação da sua posição e da economia corrupta que lhes permitia prosperar. Quando chegou a altura de abandonar o poder, escolheu para seu sucessor alguém que lhe dava garantias de que a sua própria fortuna entretanto adquirida não seria posta em causa: um antigo agente do KGB, de seu nome Vladimir Putin.

Nem todos os “oligarcas” que nasceram nos anos 90 veriam a promessa de Putin ser cumprida. À medida que este consolidou o seu poder pessoal, um novo arranjo tomou forma: os “oligarcas” poderiam fazer o que bem quisessem através dos meios que quisessem, desde que não afrontassem Putin nem se recusassem a cumprir ordens que ele eventualmente lhes desse.

O regime tornou-se efectivamente numa estrutura de crime organizado. Tanto as eleições manipuladas e a repressão a nível interno, como a beligerância externa (a invasão da Geórgia, a anexação da Crimeia, a intervenção na Síria) ou as “medidas activas” de patrocínio de partidos extremistas e radicais na Europa (hoje em posições estratégicas nos governos de Itália e Áustria) e de interferência nos seus actos eleitorais (como nos EUA) têm o mesmo objectivo: preservar o poder e a fortuna pessoal de gente sem escrúpulos, que usou o Estado para enriquecer e continua a usá-lo para não perder o que conquistou.

50 anos depois do fim da “Primavera” checoslovaca, os sonhos de Praga continuam a ser tão impossíveis como a invasão dos tanques russos mostrou que eram, e a realidade em Moscovo um pesadelo não muito diferente do que era na altura.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.