A recente eleição de Boris Johnson para primeiro-ministro britânico, para lá das conse­quências que possa vir a ter no plano da política interna britânica, irá seguramente vol­tar a agitar as águas no relacionamento estabelecido entre o Reino e a União Europeia, nesta que se pensa ser a fase final da permanência britânica no seio da Europa da União.

Independentemente dos seus méritos académicos que são muitos, do seu curriculum político que é vasto e rico, e da sua obra literária que é de referência em muitos aspetos – permitindo-me destacar a extraordinária biografia de Winston Churchill publicada sob o título “O factor Churchill. Como um homem fez história” (Edições Dom Quixote, Lisboa, 2015) – apesar de todas estas características eminentemente pessoais que lhe são re­conhecidas, o novo primeiro-ministro britânico é, paralelamente, ao nível da opinião publicada e por muitos que com ele privam ou privaram, definido e caracterizado como sendo um personagem não confiável, um político descredibilizado, não raro mentiroso compulsivo, errático e instável, demagogo e populista.

Como é que um personagem deste recorte consegue guindar-se ao mais importante cargo do governo britânico, lide­rando a mais velha democracia parlamentar europeia, pátria do parlamentarismo, e uma das maiores economias europeias, é algo que, um dia, a história não deixará de avaliar e determinar.

Para o que aqui nos interessa deixar registado, porém, importa seguir com atenção os passos que o novo governo de Boris Johnson irá dar no domínio do relacionamento com a União Europeia, que o mesmo é dizer no plano de encerramento das negociações que visam a saída do Reino Unido da União. Foi esse o motivo que levou à queda de Theresa May e foi esse o motivo principal que ditou a subida de Johnson ao poder.

E porque nunca é demais relembrá-lo, recordemos que este já é o segundo primeiro-ministro que o Reino Unido escolhe que tem como missão principal retirar o Reino da União Europeia. O legado político do referendo verdadeiramente inqualificável convo­cado por David Cameron continua a fazer-se sentir e não está dito nem escrito em lado algum que as suas consequências se possam aproximar do seu fim.

O novo primeiro-ministro já fixou uma nova data para a saída britânica da União – o próximo dia 31 de outubro. E já fez saber que nessa data a saída se concretizará, com acordo ou sem acordo, regulada ou desregulada. De permeio, fez saber que daria prio­ridade à renegociação do acordo de saída já subscrito e sucessivamente chumbado pelo Parlamento de Westmisnter.

Esqueceu-se de um pequeno detalhe – para este acordo ser renegociado, é preciso as duas partes que o subscreveram quererem renegociá-lo. E a União Europeia já fez saber que aquele acordo é para manter como está e que não está disposta a mexer no que já foi acordado. No máximo Bruxelas estará disposta a conceder algumas alterações ao protocolo adicional ao referido acordo que, todavia, não é vinculativo.

Num tal cenário, poderemos estar mais perto do que nunca de uma saída desregulada e desordenada do Reino Unido da Europa dos 28. E se já é difícil, por ser a primeira vez que acontece um Estado sair da União, prever com rigor os efeitos e as consequências da saída do Reino Unido da União Europeia, a simples possibilidade de essa saída se concretizar de uma forma desregulada e desordenada dificulta a tarefa ao máximo. Nin­guém pode prever, com rigor e fiabilidade, o que poderá vir a suceder e os impactos que poderão advir para os cidadãos e para a economia europeia dum Brexit desordenado.

Claro que, no meio de toda esta tormenta, surge-nos um ator improvável interpretado por um personagem muito mais perigoso que Boris Johnson, pela sua errância, pela sua ignorância, pela sua falta de princípios e valores, pela sua falta de visão geopolítica e geoestratégica. Referimo-nos, obviamente, aos Estados Unidos liderados por Donald Trump.

Trump, que de certa forma constitui o modelo que Johnson pretende reproduzir, não perdeu oportunidade para incrementar e aplaudir a nomeação do novo primeiro-minis­tro britânico. E de lhe reiterar o oferecimento de uma parceria especial estratégica no plano transatlântico, que compensasse eventuais prejuízos que o Reino Unido viesse a sofrer como resultado do Brexit. Do Brexit de que Trump, obviamente, é dos mais fer­vorosos apoiantes e com o qual pretende que se produza uma profunda machadada económica na própria União Europeia.

Se é verdade que os Estados Unidos nunca mor­reram de amores pelo projeto europeu consubstanciado pela União Europeia, não é me­nos certo que todos os anteriores ocupantes da Casa Branca sempre souberam camuflar melhor ou pior esse sentimento. Trump, verdade seja dita, foi o primeiro presidente norte-americano que enfrentou assumida e publicamente a dimensão económica e po­lítica da União Europeia e que, de um momento para o outro, ganhou um aliado impro­vável a chefiar o governo de Londres.

É verdade que não atingimos o Armagedão; mas o simples facto de termos, hoje em dia, duas personalidades com Donald Trump e Boris Johnson à frente de dois Estados como os Estados Unidos e o Reino Unido, que sempre foram faróis de esperança, liberdade e democracia do ocidente deve ser suficiente para nos interpelar sobre que democracia estamos a construir, sobre que mundo estamos a erguer, sobre que destino demos aos valores e princípios que nos foram legados pelos nossos antepassados.