Vivemos dias difíceis e incertos. Ainda há três meses atrás não nos imaginávamos nestas circunstâncias. Lembro-me que por altura da passagem de ano vi muitos memes nas redes sociais a evidenciar que 2019 teria que terminar rápido, como se fosse “um ano para esquecer”. Parece que essa ideia desapareceu depressa. Quase como se a vida, essa “coisa” irónica, nos viesse mostrar novamente o quão errados estávamos e que talvez – só talvez – as nossas vidas não fossem assim tão más e que, afinal, “2019 deveria regressar, pois estava perdoado”.

De repente estamos, pelo menos a maioria de nós, a trabalhar (quando se consegue) a partir de casa e a reduzir as nossas idas à rua. Os percursos diários são muito distintos dos que tínhamos no início de Março, e não sabemos bem quando e como tudo isto acabará.

Pensamos, porque temos tempo ou porque de alguma forma somos obrigados, nos que não nos podem faltar, dos médicos a quem recolhe o lixo, dos auxiliares de hospitais aos polícias, agricultores, empregados de supermercados, bombeiros, auxiliares de lares de terceira idade e todos os que aqui não listados mas que contribuem para que o país não se torne ainda mais caótico, que sobreviva e volte a ter som.

Estranhamente, é o silêncio, com excepção do som das ambulâncias, que parece caracterizar esta crise, e no nosso caso isso não é necessariamente mau, mas sim estranho.

Não me alongo mais em caracterizações dos tempos que correm, de uma maneira ou de outra todos sabemos do que falo. Gostaria, contudo, que nestes dias pudéssemos pensar mais no que é tomar decisões em tempos de incerteza. Talvez a partir daí consigamos perceber melhor como algumas decisões políticas são tomadas, ainda que seja difícil sistematizar, de momento, estes processos.

Teremos um longo futuro para analisar o que está a acontecer agora, e porque ainda vivemos em democracia, deveremos conseguir perceber melhor o raciocínio dos decisores políticos perante tempos de incerteza como aqueles que agora vivemos.

Em boa verdade, a incerteza, e a incerteza científica mais especificamente, é algo com o qual os decisores políticos são confrontados nos processos de decisão que realizam todos os dias. Claro que os níveis de incerteza dos mesmos variam, assim como o seu impacto e urgência. Veja-se, por exemplo mas não só, o longo debate e respectivas medidas sobre os impactos ambientais de medidas do crescimento económico.

Mas voltemos à tomada de decisão em tempos de incerteza, especialmente em políticas públicas, nas quais não é possível “agradar a gregos e a troianos”. Com o tempo, certas decisões podem parecer-nos mais acertadas do que outras, existe até uma certa dose de senso comum nestas coisas, mas a verdade é que não é assim tão claro que o senso comum nos leve por melhores caminhos. Como sempre dizemos quando estudamos probabilidades, o facto de algo ser altamente improvável não quer dizer que não venha a acontecer, a vida toda prova-nos isso mesmo.

No entanto, vivermos (ou decidirmos) com medo dos improváveis e querendo responder a cada uma dessas baixas probabilidades também não nos leva a lado algum. Sendo assim, o que podemos fazer? O que fazer sobretudo quando os dados científicos em que nos baseamos têm um elevado grau de incerteza? O que fazer em momentos como os que vivemos actualmente?

Não só há falhas de diagnóstico óbvias da situação (não vou aprofundar com todas as projecções relativas a um número muito superior de infectados com Covid-19 do que aqueles que estão assinalados, até porque não é essa a minha área de conhecimento e haverá quem vos ilustre muito melhor do que eu), como também devemos ler os dados fornecidos pela China com muito cuidado. Como se sabe, por razões estratégicas aos mais diversos níveis, poderá haver interesses e condições para que os números sejam não só pouco fiáveis devido à situação em si, mas por razões políticas e económicas.

Então como decidir?

Em países democráticos, como é Portugal, as instituições funcionam num diálogo permanente. As instituições políticas e as técnico-científicas participam, necessariamente, nessa conversa e, mais concretamente, congregam pontos para que as políticas públicas sejam implementadas. Tem sido esse o cenário que temos visto nas últimas semanas, mas há, nos bastidores, uma muito maior movimentação institucional e de esforço de coordenação que é mais densa e complexa e que não é forçosamente do conhecimento de todos os cidadãos.

Estas movimentações são também, amiúde, burocráticas, e nem sempre as mais eficientes, mas têm, daquilo que conheço e até daquilo que espero, funcionado. Ainda assim, como decidir neste tipo de situações? Fechar fronteiras, não fechar fronteiras, decretar estado de emergência ou não decretar, etc.,etc.? Todos nós temos ideias do que devemos fazer, mas há muitas dimensões sobre as quais não temos conhecimento, nem informação actualizada.

Mas isso não inibe uma sociedade civil activa. Temos visto as movimentações de pessoas anónimas e de empresas grandes e pequenas no sentido de auxiliarem na implementação de decisões políticas, e a aparente defesa por grande parte da população de medidas mais restritivas e mais rápidas – variável que os decisores políticos não irão ignorar. Mas voltemos ao processo de tomada de decisão: o que fazer quando confrontados com tão grande incerteza?

Há um primeiro estádio em que se tenta perceber se um determinado assunto pode ou não ser problemático. Claramente, com a emergência sanitária que vivemos hoje esse estágio já está ultrapassado, mas talvez em Janeiro passado tenha sido considerado. Nesse momento este problema não era claro, não estava bem definido nem caracterizado como hoje está. Se isto ocorre e se a informação científica sobre um problema é muito pouco definida, é muito pouco provável que haja políticas públicas nesse sentido específico.

Seria essa a situação no início de 2020, mas isso não significa que não houvesse quem alertasse para a pandemia, e muito certos estavam. Digamos que há dois ou três meses, uma pandemia ainda era muito incerta e acredito que, nessa altura, os custos de actuação ou, se quiserem, de decisão política na prevenção e preparação do país para tal eram ainda muito elevados do ponto de vista decisório.

Hoje, podemos (e talvez até devamos) argumentar que o “barato sai caro”, mas quando se tomam decisões com recursos escassos tende-se a aferir do que é mais provável acontecer, por oposição de ter decisões para tudo o que possa acontecer. Essa selecção não está, obviamente, isenta de erros de cálculo – atenção que não estou a defender que não era possível fazer-se algo mais e de forma mais eficiente e mais cedo.

Depois, podemos sempre questionar se as medidas são boas ou más, mas essa é uma avaliação para o futuro. Quando algo de tão grandes proporções rebenta, a incerteza e o risco subjacentes e relativos ao processo de tomada de decisão podem ser precipitados. Ainda que o processo implique celeridade, será sempre importante saber quais os meios existentes, “contar as espingardas”, sendo que existem as projecções existem de acordo com possíveis cenários.

Nem sempre todo este processo é fácil ou rápido. Talvez nesse ponto, um diagnóstico rápido seja algo que tenhamos que claramente trabalhar no futuro. Mas como não sei exactamente se esse é o caso, avanço com esta ideia por me ter parecido no início deste choque que não se sabia exactamente o que tínhamos em termos de material e de pessoal. Infelizmente, este ponto não é tão simples como organizarmos a nossa despensa, mas é muito importante para o desenrolar das situações e para se tomarem melhores medidas: essa é uma grande lição a aprender.

Depois de se aferir essa informação há que decidir o que é prioritário no momento e nos que se seguem, afinal este é um processo orgânico e muito pouco linear. As estratégias implementadas hoje, como num jogo de xadrez, terão consequências amanhã e no futuro próximo, pelo menos, e têm que ser consideradas muitas dimensões de acção.

É por isso, por exemplo, que tem havido uma preocupação central com a economia. É por isso que o combate a esta pandemia se faz com especialistas nestas áreas, mas também é por isso que não se deixam de parte aspectos psicológicos, políticos e sociais e é por isso que este é, tem de ser e parece-me estar a ser, um processo de tomada de decisão multidisciplinar.

Depois, e antes, este processo requer liderança, daquelas lideranças que conseguem ler o que têm em frente aos olhos e quase intuitivamente decidir. Finalmente, e como em tudo, espera-se que a sorte nos sorria, ainda que haja vozes que dizem que para os que estão bem preparados a sorte não interessa nada.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.