O papel do SNS na protecção da saúde e promoção do bem-estar dos portugueses durante as últimas décadas é inquestionável tornando-se um pilar social reconhecido. O papel de António Arnaut e Mário Mendes foi decisivo e é por nós retido e celebrado, tal como o é a provação a que o primeiro foi sujeito e o seu regresso a Coimbra, e abandono da política ativa, após a aprovação da lei.

A prova derradeira, impensável, para o SNS, foi a pandemia que o pôs à prova, trazendo profissionais de todas as áreas para a linha da frente e mobilizando recursos e vontades julgadas inexistentes ou exauridas. Da exaustão surgiu a força e o ranger de dentes que com o envolvimento de todos e uma direção capaz, nos trouxe até aqui. A sua importância decisiva no sistema de saúde do país é hoje, por isso, ao contrário de antanho, obrigatoriamente consensual, existindo, no entanto, pontos de vista necessariamente diversos sobre a melhor forma de o manter, desenvolver e modernizar.

A Saúde dos portugueses e a saúde da própria democracia, como regime de liberdade, solidariedade, igualdade de oportunidades e necessário desenvolvimento económico, dependem de um serviço de saúde solidário, eficaz, eficiente e gerador de bem-estar social. Num período de crise global, económica, social e de valores, que se potenciou e adiou artificialmente com as medidas contra a pandemia, com uma parte significativa da população em enormes dificuldades, mais importante se torna a existência de um Serviço Nacional de Saúde forte, solidário, em prontidão, ágil e sustentável. Nesta conjuntura, é necessário assegurar a sua continuidade e o acesso equitativo aos cuidados e tecnologias de saúde, suportando o mais forte pilar da coesão social.

Dizer que o SNS é património de todos, traduz o direito de questionar as suas insuficiências, mas também o dever e a responsabilidade de contribuir para que funcione o melhor possível. Só fazendo o SNS efectivamente nosso poderemos assegurar a sua sobrevivência, desenvolvimento e contribuir para a sua modernização.

Mas não podemos meter a cabeça na areia. Estamos em mais um momento, em que o SNS corre riscos. Respondeu de forma díspar à pandemia, não conseguiu, tal como nenhum sistema no mundo, fazer tudo e os seus adversários querem cobrar.

A crise sistémica de crescimento económico, o aumento da dívida pública, e as exigências da Europa que assumimos e a que estamos submetidos, põem em causa o futuro do SNS, se nada pensarmos e fizermos por ele.

Existem duas frentes para o empenhamento dos portugueses no desenvolvimento do seu SNS.

Uma frente interna, onde se pode fazer muito melhor do que até agora, e uma frente Europeia onde se configuravam, antes da pandemia, sérios condicionamentos à sua existência.

Na frente interna devemos assumir, de uma vez por todas, que o SNS é o único serviço público que tem concorrentes diretos. Estes são os grandes parceiros privados que concorrem para os mesmos dinheiros públicos. Cerca de um quarto (25%) do orçamento da saúde já vai para os hospitais privados e, no total, mais de 40% do orçamento da saúde tem como destino entidades privadas.

Destes, os hospitais privados têm a maior fatia e na forma como são geridos, têm uma capacidade de gestão de recursos humanos e materiais e de adaptação à realidade momentânea da oferta e procura que em nada se compara com a dinâmica administrativa dos hospitais públicos. Sujeitos a regras de contratação pública são muito lentos a reagir, perdem recursos humanos sem poderem acompanhar a competição dos privados que podem “secar” assertivamente os hospitais públicos indo contratar elementos-chave de equipas ou tendo mesmo estratégias para áreas-chave, que depauperam um hospital público de um dia para o outro. A construção de um Hospital privado em Beja visa concentrar os melhores recursos médicos e de enfermagem do Alentejo e “anular a concorrência” pública rapidamente.

Tem sido a honra, quase um sentido de serviço público e de defesa do bem comum, de muitos elementos imprescindíveis às equipas, que os têm mantido no serviço público e não as políticas necessárias para que isso aconteça.

E para não continuarmos neste doce e lento definhamento do único serviço público concorrencial, este tem de ser dotado de meios para fazer face aos seus objetivos, a saber:

O SNS, através do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, tem de ser um corpo especial retirado do restante sector administrativo do Estado, retribuído de forma diferente e com uma gestão igual ou aproximada ao direito privado, que possa contratar e, eventualmente, rescindir contratos, capaz de competir inclusive nas áreas que foram tomadas pelo sector privado: como ceder medicamentos; fazer todas as análises que puder tal como exames de imagem e criar condições para fazer, no seu perímetro, tudo o que puder dos tratamentos cirúrgicos que atualmente decantam para o sector privado.

Os serviços, cuidados hospitalares, primários, continuados, paliativos e de saúde pública têm de ser integrados para responder de forma mais qualificada e menos onerosa. Tem de poder comprar de forma quase imediata os bens e serviços de que necessita sem ter de aguardar pelos morosos concursos públicos. Sem perder a sua capacidade de controlo a posteriori, isto é, de julgar os gestores públicos pelas suas decisões e resultados e daí tirar as respetivas consequências.

Tem de ter carreiras profissionais apelativas e concorrenciais que satisfaçam os profissionais de excelência que o servem. Não bastam as palmas e as velas à janela. Os profissionais de saúde têm de ter uma carreira apelativa em todos os aspectos desde o reconhecimento até aos proventos.

Dir-me-ão que para isso necessitamos de ter gestores públicos com carácter à prova de bala. Mas eles existem e deste há muito tempo que defendemos a existência do perfil de gestor público da saúde que para além de bom gestor tem de ter um perfil de cidadania e dedicação à causa pública comprovada. Desta forma, cumprimos a obrigação de defender o legado de António Arnaut, fazemos propostas avançadas de defesa do SNS assertivas e a medicina portuguesa terá um novo alento de desenvolvimento: uma competição franca e igual entre o sector público e o sector privado.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.