O centro político, a neutralidade ideológica e doutrinária que sempre achei virtuosa, equilibrada e ponderada, afinal surge como instigadora de uma dicotomia ainda mais marcada, entre a direita e a esquerda que conhecíamos, agora aglomeradas, e os extremos. Estes, antes remetidos para papéis secundários, são hoje a verdadeira oposição. Ameaçam o poder ou já o tomaram, tornando exíguos os anteriores arranjos político-partidários e minoritários de alguns partidos que outrora foram dominantes.

É preciso redefinir os conceitos que enquadram a ação e a conceção política. Direita e esquerda já não servem. Existem hoje vários governos e políticos ocidentais que não preenchem as características definidoras de qualquer uma destas linhas de pensamento político e de organização social e económica. A esquerda privatizou, desinvestiu, desregulamentou, tornou-se (mais) liberal. A direita “conservadora”, pelo menos parte dela, adotou causas sociais (ou civilizacionais) que contrariam a doutrina vaticana, como o casamento ou a coadoção por casais do mesmo sexo. Pelo menos admitiu liberdade de voto.

Os principais partidos que caracterizavam a dicotomia parlamentar juntam-se numa luta comum contra os partidos considerados populistas, dos extremos. O velho provérbio “inimigo do meu inimigo, meu amigo é”, é o que hoje faz mais sentido. Quando os partidos do “arco da governação” se aliam e apelidam os “populistas” de perigosos, inaptos para governarem, dão força aos argumentos vitimizadores destes partidos. Convencem cada vez mais eleitorado que os partidos que antes eram vistos como extremistas, afinal sempre foram alvos de uma conspiração liderada pelas elites. As mesmas elites que, segundo este argumento que ganha cada vez mais força, controlam e dominam a sociedade, concentram recursos e esmagam a ascensão social.

O problema é que estes esforços conjuntos corroem as suas próprias identidades, misturando o que os distinguia. Tornam os extremos numa força expressiva da oposição. Tão expressiva que já são a principal força de oposição nalguns dos países que antes lideravam a construção europeia e norteavam a solidariedade entre estados. Tão marcante que altera a direção de alguns políticos e dos seus partidos.

Esta alteração na relação entre as forças políticas (e entre estas e o eleitorado) é também uma causa e efeito do fim do politicamente correto. As frustrações com políticos mentirosos e a inverosimilhança das suas ligações menos transparentes com o mundo corporativo, tornaram-se demasiado evidentes. Esta inquietação varreu-se para debaixo do tapete durante demasiado tempo. Tanto tempo que não é preciso ser defensor do Trump para não se gostar do politicamente correto. Este já só estava correto para os políticos; os cidadãos no ocidente separaram-se do seu sistema político.

Este divórcio está já tão consumado que hoje, com as sanções impostas à Rússia pelos EUA, em jeito de reconhecimento da violação das suas eleições, ninguém parece estar muito incomodado. Incomodado pela autocrática Rússia ter conseguido influenciar mais as eleições americanas do que o contrário. Tão pouco se vê uma opinião pública, altamente mobilizável, alertada para a adulteração de um resultado que se queria exclusivamente democrático. O seu resultado democrático que, era uma vez, se tinha como sagrado.

Hoje, tudo é colocado em questão. O livre comércio, a solidariedade, o Estado, a liberdade de imprensa, a verdade científica, o senso comum, a democracia. Atualmente, segundo uma sondagem referida pelo Courrier Internacional, um em cada seis americanos considera que um regime militar não seria uma má ideia. Há 20 anos, um em cada vinte tinha esta consideração. Os “outliers” tornaram-se expressivos. Isto, num país que tinha como a sua maior fonte de orgulho a capacidade de ser “Leader of the free world”.

Não menos surpreendente é o facto de duas das democracias mais antigas estarem em vias de alterar as leis que protegem a liberdade de imprensa; para além dos repetidos ataques à imprensa, durante a campanha eleitoral Trump prometeu facilitar a ação penal contra jornalistas. O Reino Unido segue neste momento o mesmo caminho com Theresa May, cujo governo está a preparar um projeto-lei que obriga os meios de comunicação a pagar as despesas legais de entidades que movam processos contra si, mesmo que o juízo dos tribunais lhes seja favorável. O mesmo ataque foi consumado na Polónia e na Hungria, estados que prezavam a liberdade recentemente conquistada. Este ataque à imprensa não vê tons políticos, pois historicamente ambos os lados dos extremos procuraram abafar o quarto poder.

Mais assustador é verificar que não é preciso, pois os media parecem já não influenciar os resultados eleitorais, numa era de “pós-verdade” gerida pelas redes sociais. A inércia e o facilitismo da opinião pública perante estas degenerações políticas indica que há extremos já no poder – em democracias que perdem poder.