Para quem estuda Ciência Política, como eu, a crise e o desgaste da Democracia são questões absolutamente centrais e alvo de uma constante reflexão, já que, por norma, e por “defeito profissional”, ou estamos a tentar prever o que acontecerá no espectro político, ou estamos a explicar o que acontece e os seus porquês.

Tendencialmente, opto mais pelo último ponto, mas, se há coisa que aprendemos logo nos primeiros anos nos bancos da faculdade (ou deveríamos aprender) quando estudamos estes assuntos é que esta ideia de Democracia – esta ideia da Democracia Ocidental, da Democracia Liberal – se veste de muitas roupagens e acessórios, e esses nem sempre se conjugam da melhor maneira com certas estéticas. Na verdade, e não sendo isto surpreendente, não há uma definição absoluta do que é uma Democracia mas aproximações sobre as quais a maioria estará de acordo.

A Democracia enquanto “o governo do povo, para o povo e pelo povo” como Abraham Lincoln referiu no seu discurso em Gettysburg, eventualmente influenciado por anteriores palavras do britânico Benjamin Disraeli, tem, quando abordamos a sua praxis, aparentemente muitas contradições às quais não podemos voltar costas, pois as mesmas moldam a nossa vida. Para os que estudam empiricamente as diversas expressões do que a Democracia é e não é, este debate torna-se ainda mais relevante porque sem isso não há empirismo que resista.

Como se costuma dizer, “contra factos não há argumentos”. Ora, se já Robert Dahl assinalava em 1989 no seu “Democracy and its Critics” uma listagem de sete pontos cujo cumprimento seria essencial para termos o que se chama uma Democracia, longe estava o mesmo de pensar que Estados como os EUA, nos dias de hoje, estariam perante um cenário a tender para aquilo que é menos democrático, pelo menos no que diz respeito às eleições livres e imparciais.

Não me alongo sobre o sistema político americano e a ideia de sufrágio universal porque essa é uma outra (longa) conversa. Mas olhemos resumidamente para esses pontos – uma Democracia deverá ter: 1) Governantes eleitos; 2) Eleições livres e imparciais; 3) Sufrágio universal; 4) Direito de ser eleito democraticamente; 5) Liberdade de expressão; 6) Direito a fontes de informação alternativas; 7) Direito de associação autónoma.

Como se pode imaginar, o recrudescimento de movimentos anti-democráticos eleitos democraticamente via partidos políticos e movimentos equiparados a que temos vindo a assistir nos últimos anos, vulgo partidos populistas, trazem à baila medos fundados, mas não unicamente, na última guerra mundial, e o que historicamente se passou aquando do crescimento de regimes de cariz fascista, autoritário e nazi. Aliás, para muitos dos colegas alemães com quem lido no dia-a-dia pouco do que estamos a assistir é, neste momento, surpresa.

Na Alemanha estudam-se aprofundadamente as causas e a ascensão do regime nazi em vários níveis lectivos. Assim, não é muito difícil percebermos que há aspectos que no século passado e nos dias de hoje parecem encontrar paralelismo, como abordado recentemente em “How Democracies Die”, de Steven Levitsky e de Daniel Ziblatt. O livro tornou-se um best-seller por ter, na minha opinião, conseguido sintetizar aquilo que já alguns (e uma grande maioria de historiadores) tinham constatado vezes e vezes sem conta.

Ainda assim, diria que boa parte da população – aquele povo para o qual o governo é, para o qual o governo age – não está consciente destes perigos, daquilo que muitos académicos, alguns especialistas em populismos, outros na progressão política “natural” dos sistemas políticos, e dos que analisam a sociedade, têm estado a alertar há já algum tempo.

Este artigo de opinião é publicado a 4 de Novembro, no dia seguinte às eleições nos EUA. Será um dia em que estaremos, muitos de nós, mais expectantes em ver como a população irá reagir a esses resultados do que em saber os resultados, visto a sociedade norte-americana estar altamente polarizada. Não serão exagero os alertas deixados por alguns dos meus colegas especialistas na realidade do país e no seu sistema eleitoral sobre o aumento da violência, e o medo generalizado de não se saber como as instituições manterão a sua capa democrática. Teremos que aguardar.

Pessoalmente, vou aproveitar para reler um livro lançado no final de 2019, que recomendo vivamente: “Crisis of Democracy”, de Adam Przeworski. Não me saem da cabeça as suas palavras quando refere que a igualdade política (a base das nossas democracias) não convive bem com as desigualdades económicas, nem a luta pelo poder político (e eu acrescento a sua manutenção) a qualquer custo conjugada com a presença ou ausência de incentivos económicos. Onde é que já vimos isto?

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.