Um dos argumentos mais invocados contra a realização de um referendo sobre a questão da eutanásia é o de que Portugal é uma democracia representativa. Não uma democracia direta.

Esta afirmação corresponde, porém, a uma meia verdade, que – como todas as meias verdades – está bem próxima da mentira.

A Constituição portuguesa não qualifica a nossa democracia como “representativa”, mas sim como “participativa”. O que faz, justamente, com o objetivo de sublinhar que considera a representação política, nos moldes tradicionais herdados do liberalismo, insuficiente. Não basta os cidadãos votarem de quatro em quatro anos e, entre eleições, assistirem passivamente às decisões que os governantes tomam em seu nome.

É necessário que os cidadãos participem mais ativamente nas decisões políticas fundamentais, por iniciativa dos governantes e por sua própria iniciativa.

Daí que, após amplo debate, na revisão de 1989 se tenha introduzido na Constituição o instituto do referendo. Daí também que na revisão constitucional de 1997, largamente dedicada ao reforço dos direitos políticos, se tenha previsto a iniciativa legislativa popular e a iniciativa popular de referendo. Daí ainda a valorização constitucional e legal do direito de petição e do direito de ação popular, bem como do direito dos cidadãos a participarem nas decisões que lhes dizem respeito e, em geral, em inúmeros processos de consulta pública.

Ser contra o referendo – mesmo estando este previsto constitucionalmente – é uma opinião legítima, mas corresponde a um retrocesso no caminho que a Constituição qualifica de “aprofundamento da democracia”.

É de resto uma ideia perigosa, considerando que um dos problemas da democracia portuguesa é o afastamento entre governados e governantes, o desinteresse crescente dos cidadãos pela política. Num quadro de profunda crise da representação político-partidária, querer prescindir do mais importante instrumento de democracia direta parece, no mínimo, pouco sensato.

Mas poderá ter-se uma posição favorável ao referendo em abstrato e, ao mesmo tempo, contra o referendo da eutanásia em concreto? Não parece.

Neste ponto, o argumento mais invocado é o de que os direitos fundamentais não se referendam.

Esta é, todavia, uma afirmação vazia de sentido. Um simples soundbite!

Por um lado, é evidente a petição de princípio que consiste em assumir que já existe um direito antes mesmo de se tomar a decisão, em referendo ou por outra via, se esse direito deve ser consagrado legalmente – seja ele o direito a morrer com dignidade, o direito a decidir sobre a própria morte ou o direito ao suicídio.

Por outro lado, a tese em causa está em ostensiva contradição com o facto de em Portugal já se terem efetuado, em 1998 e 2007, dois referendos sobre a interrupção voluntária da gravidez, que é igualmente uma questão fraturante sobre o valor da vida e dos seus limites.

Finalmente – e este é o ponto mais importante –, o legislador de revisão constitucional, quando em 1989 consagrou o instituto do referendo, teve o cuidado de excluir do seu âmbito um conjunto de matérias, com receio do seu desvirtuamento populista. Por exemplo, matérias tributárias ou relativas ao estatuto dos titulares de cargos políticos.

Não obstante, esse cauteloso legislador de revisão constitucional deixou claramente dentro do âmbito do referendo todas as matérias respeitantes a “direitos, liberdades e garantias”. Aliás, a não ser assim, sobre que outras questões de relevante interesse nacional poderia incidir o referendo?