Em “A Laranja Mecânica” de Stanley Kubrick há uma cena perturbante em que um gang de jovens, os “droogs” liderados por Alex, o protagonista da história, decide arrombar a casa de um escritor e a sua mulher, cometendo atos de extrema violência contra o casal. É perturbante pela forma como expõe a alegria malévola do gang, que decide violar a mulher enquanto Alex dança e canta Singin’ in the Rain.
O filme é hoje considerado uma obra-prima, e foi baseado na obra literária de Anthony Burgess, uma sátira distópica que retrata uma sociedade futurista, onde jovens sociopatas e delinquentes se entregam a uma cultura de extrema violência. Há uma dimensão de espetáculo amoral e estridente subjacente aos horrores, que causa repulsa no leitor. Alex acaba por ser preso e sujeito a uma experiência pavloviana perversa, que o submete a uma reeducação extrema, tornando-o incapaz de voltar a cometer atos de maldade.
Tenho-me recordado muito da obra de Burgess por estes dias, ao sermos confrontados atualmente com a cultura da masculinidade tóxica e misógina que celebra a supremacia masculina e a violência contra mulheres. De certa forma, a nossa sociedade está a ser infetada pelos “droogs” de Burgess e alastra na Internet, influenciando muitos jovens que querem pertencer a esta cultura.
Este fenómeno não pode ser desligado de um contexto em que assistimos um alarmante ressurgimento de movimentos da extrema-direita que procuram intimidar, ameaçar e agredir. São movimentos que reagem não só contra a defesa dos direitos das minorias e igualdade de género, mas contra a cultura, contra a diversidade, contra a inclusão, contra tudo é considerado uma ameaça existencial à sua ideologia de supremacia. Já não falamos apenas de conservadores convencionais, mas de uma bolha provocadora de tech-bros, podcasters e ideólogos que se veem como a única alternativa.
É inegável que há um aumento de ações intimidatórias e violentas levadas a cabo por grupos de extrema-direita em Portugal. O ato de agredir e incitar ódio ou violência contra o outro, com motivações machistas, racistas ou xenófobas, é talvez uma das maiores crises desta geração e deveria gerar alarme social. É urgente reconhecer o perigo que estes grupos representam, e que não se trata de uma questão que se limita à liberdade de expressão. É a própria liberdade dos cidadãos que está em causa ao ser ameaçada pelo ódio e violência. Não deixemos que a sátira distópica de Burgess se transforme na nova normalidade.