Vivemos momentos atípicos que nos fazem pensar como será depois ou se voltaremos ao antes. A covid-19, denominada por políticos e responsáveis nacionais e internacionais como ‘a guerra’, mudou a forma como nos comportamos. E, de facto, o comportamento humano está na base de toda a construção social, política e económica.
O confinamento, o medo da doença e da morte levaram-nos ao confronto connosco próprios. Redescobrimos que não éramos deuses e que, afinal, a última grande pandemia, ocorrida há cem anos, poderia repetir-se sob a forma de um novo vírus e, novamente, da procura de uma cura ou prevenção (vacina) para o mesmo. A tecnologia e a ciência não dão respostas imediatas, nem podem dar, à criatividade da natureza que ainda é quem determina os ritmos da humanidade.
Das más notícias e consequências deste confinamento forçado existem outras boas, como a diminuição brutal da pegada carbónica, apesar da manutenção de algumas atividades económicas, incluindo industriais. Também nos apercebemos como somos interdependentes e não estou a escrever agora sobre a globalização.
Somos interdependentes no seio das sociedades que construímos e o trabalho de todos é necessário para que prossigamos, seja em teletrabalho, em trabalho presencial, mais ou menos na linha da frente. O que é dispensável é apenas aquilo de que podemos abdicar. Talvez isto nos ajude a repensar o valor e a dignidade do trabalho, bem como, a importância de todas as tarefas, das mais bem pagas e exigentes em termos de formação até às que nos parecem mais simples.
Igualmente, em termos internacionais, muito pode e vai mudar. Reforçar-se-ão as ideias antiglobalização, propaladas por muitos que em tempos as defenderam. Os nacionalismos e extremismos poderão encontrar novos caminhos, sobretudo, em Estados cuja resposta foi menos célere ou cujos efeitos da pandemia se descontrolaram. Tudo irá depender de como os cidadãos atenderem aos seus governos. Mas existirão, decerto, consequências positivas, como a relocalização da produção e o reconhecimento da importância de produzir localmente, sobretudo, os bens essenciais, como a alimentação.
Seria bom que, no final, apenas retivéssemos os bons ensinamentos: a importância de calibrar a nossa mobilidade e torná-la sustentável, valorizar o consumo inteligente, favorecer a produção local (que também diminui os custos financeiros e ambientais da mobilidade). Contudo, sabemos que assim não será. Também teremos as consequências negativas, como o medo a gerir os contactos sociais, as potências internacionais a esgrimirem os seus argumentos, tudo aspetos que fazem parte de uma sociedade humana.
Apesar de tudo isto, o confinamento para mim não tem sido uma experiência de solidão ou de excesso de tempo livre. Com uma filha pequena e família por perto, tem sido um desafio assinalável gerir tempos e espaços que se cruzam. Por isso, não li mais do que o habitual, não vi mais filmes ou séries do que costumo. Apenas continuei a tentar ligar-me ao mundo através da arte, como sempre fiz. Nesse contexto li dois livros, imaginem só, sobre a Segunda Guerra Mundial. Uma guerra ainda tradicional, em que se sabia quem era o inimigo. Em tudo diferente desta agora nova guerra, metáfora tantas vezes repetida e, por isso, interiorizada. Ou em tudo igual?
Os outros lados das guerras
Muitas vezes esquecemos que as guerras têm vários lados e perspetivas. No caso da Segunda Guerra Mundial habituámo-nos de tal forma às narrativas dominantes que parecemos concentrar toda a guerra em dois ou três eventos.
Quando pensamos em ocupação nazi de um país europeu, o primeiro que nos vem à memória é a França. Quando aludimos à derrota das forças nazis, a primeira ideia que surge é o desembarque dos aliados na Normandia. Quando pensamos em campos de concentração, o primeiro que nos vem à memória é Auschwitz-Birkenau. Apesar da importância destas narrativas, existem outras. Esta guerra teve outras latitudes e longitudes. Afetou outros povos, destruiu outras vidas. Tal como agora o som dos alertas estalou nos nossos ouvidos apenas quando a covid-19 matou massivamente na Europa, também então foram forjadas narrativas seletivas do curso dessa outra guerra.
Viajemos à China, ocupada parcialmente pelo Japão, com dois partidos lutando em conjunto contra um mesmo inimigo, mas digladiando-se entre si, o Partido Comunista Chinês e o Partido Nacionalista – KMT. O autor é Mai Jia, o livro é “A Mensagem” e a editora é a Quetzal. O livro é recente e recebeu muitos elogios, sobretudo, direcionados para os amantes dos livros de suspense. A obra foi adaptada a série televisiva, peça de teatro e está em vias de se tornar num videojogo. As adaptações foram muito bem-sucedidas na China e a obra tem sido traduzida para inúmeras línguas, fora da habitual zona de influência cultural chinesa.
Mai Jia leva-nos através de um imbróglio, uma mensagem, cuja autoria era desconhecida, mas que revelava a existência de um agente infiltrado entre as forças japonesas que, então, ocupavam a China. Sem pretender contar a história, considero que se trata de um desafio às fronteiras entre a ficção e a realidade, partindo de acontecimentos verídicos e focando perspetivas diversas, divididas por partes que o autor desconhece quando inicia a leitura do livro.
O narrador vai guiando o leitor, dando voz às personagens, muitas vezes em discurso direto. Com o adensar da narrativa, o narrador entra em diálogo com o leitor, pergunta e responde e, em simultâneo, questiona também as suas personagens, os entrevistados que deram origem ao romance e vemos o quão ténue pode ser a essa separação que entendemos por tão clara na nossa mente.
A par de uma escrita que nos leva através de uma rede de espionagem, informação e contra informação, conhecemos pessoas dispostas a arriscar a suas vidas por ideais. Alguns destes chineses infiltrados nas forças japonesas e participantes do projeto da Esfera de Coprosperidade da Grande Ásia Oriental, que começara com a instalação do regime de japonês em Manchukuo (a Manchúria chinesa), não eram pró-chineses.
Existem chineses que se acoplavam ao novo regime para garantir a sobrevivência do Partido Comunista Chinês e do KMT. E neste vaivém também existem japoneses amantes da China que se tornam defensores deste projeto político que pretendia dominar a China. Este intricado de estórias (ou histórias) bastaria para dar significado ao livro, mas o autor vai mais longe, com uma belíssima descrição da China de então e do processo histórico que aí se passava.
Contudo, este livro não se passa apenas naqueles anos da guerra e de agonia chinesa. Este livro resulta de uma revisitação da história, oferecendo diversas visões do mesmo acontecimento, congregando a diversidade que a China traz em si, entre versões oficiais e oficiosas. É também uma viagem política sobre a China contemporânea e sobre a herança que essa Segunda Guerra Mundial, seguida de uma dura guerra civil, deixaram na China. Para o leitor ocidental constitui uma oportunidade de viajar pelos olhos de um escritor chinês que ainda hoje vive no seu país e olha as relações entre China continental e Taiwan, as memórias e as suas revivências no presente. Trata-se, então, não apenas de um diálogo entre ficção e realidade, mas também uma profunda conversa entre presente e passado, uma reflexão sobre a relação do indivíduo com a comunidade.
Partindo de uma área periférica da Segunda Guerra Mundial, percebemos as especificidades de cada zona de conflito que não menorizam o sofrimento humano ocorrido, mas lhe dão os necessários contornos universalistas, necessários quando refletimos sobre um acontecimento de carácter mundial. Viajemos agora até outra periferia deste mesmo conflito. Viajemos até à Noruega.
Agora é a Alemanha nazi que ocupa a Noruega. O livro que escolhi intitula-se “Léxico da Luz e da Escuridão”, foi editado pela Quetzal e é da autoria de Simon Stranger. Trata-se de um livro premiado na Noruega, reconhecido tanto pela sua narrativa como pelo trabalho da língua norueguesa. O autor está traduzido para diferentes línguas estrangeiras, o que lhe permite internacionalizar a sua obra, tal como acontece com este livro.
Traduzido muito recentemente para o português, “Léxico da Luz e da Escuridão” reforça esta ideia de diálogo entre ficção e realidade. Partindo de uma memória de família e de muita pesquisa sobre biografias contemporâneas relativas ao período relatado, oferece-nos uma visão ficcionada daqueles acontecimentos. Aqui o diálogo intertemporal é muito mais profundo, porque a narrativa se desenvolve sem sincronia, não obedecendo à cronologia dos factos.
A construção narrativa, organizada por letras, em vez números de capítulos, é mais próxima do deambular de alguém que procura a partir do presente reconstruir o passado. É como se acompanhasse o pensamento e ligasse os momentos narrativos através das correlações racionais, umas vezes, emocionais, outras vezes, dando-lhe uma sequência.
O relato centra-se numa memória familiar que se expande para a caracterização de um país e de como umas pessoas arriscam a sua vida para salvar concidadãos e outras se tornam nos seus carrascos ao serviço do regime nazi. Mas a riqueza desta narrativa provém do facto de o narrador manter um diálogo permanente com a personagem que dá origem ao livro, um judeu de origem russa que vivera e constituíra família na Noruega.
Este diálogo não é apenas sobre factos, é sobre a forma como esses acontecimentos poderiam ter sido sentidos por aquelas personagens. Mesmo quando se relata o mais temível carrasco dos noruegueses oposicionistas ao regime nazi, existe o cuidado de não aplanar a personagem, dando-lhe os contornos de humanidade possível a alguém que se torna num delator e violento controlador do seu próprio povo.
Os fantasmas deixados pela guerra, a sua memória e imortalidade enquanto deles houver memória são o mote deste livro que procura a verdade através da ficção. E como limpar a memória ou viver com ela? Como garantir a imortalidade das pessoas/personagens para que o presente saiba lidar com o passado?
A pandemia é uma guerra?
São questões que ficam para se refletir em tempo de pandemia. E o que tem a ver esta Segunda Guerra Mundial com o momento que vivemos agora? Talvez tenha tudo. Nos momentos em que o ser humano é desafiado, sobressai a capacidade de dar a vida pelo outro, mas também de o acusar do maior mal do mundo. Esta pandemia traz ao de cima o melhor e o pior de nós. E também o melhor e o pior que as sociedades humanas politicamente organizadas (estados modernos) são capazes de produzir.
A diabolização dos outros, a culpabilização de alguns por aquilo que nos está a acontecer, não é afinal um argumento muito familiar? Que argumentos terão usado estes Estados invasores para justificar a sua presença nestes países? Talvez a diabolização e culpabilização dos outros.
Não, a guerra não é contra o vírus. A guerra ainda está para vir. A guerra é uma invenção humana, ao contrário da luta que é intrínseca à natureza. A guerra assumirá os seus mais violentos contornos quando os efeitos desta pandemia se fizerem sentir.
A guerra advirá de uma sucessão de conflitos resultantes da luta por recursos, da luta por lideranças internas e externas, da luta pela sobrevivência e outras tantas lutas. A guerra não para apenas com a vacina ou uma terapia para tratamento. Só irá parar quando as pessoas e os países perceberem o que têm de mudar e se a competição ainda supera a cooperação, e se a globalização sem controlo responde ao benefício da humanidade. Porque, afinal, seja o sofrimento humano provocado pela guerra ou por um vírus, é universal.