Depois das eleições, a Assembleia da República viverá anos difíceis. Correr de novo para eleições, não é opção. Esse seria o caminho para nos confrontarmos com um voto cada vez mais disruptivo. É preciso que as eleições valham, mesmo sabendo que serão anos em que a casa da democracia estará sem tecto, transformada num palco de guerrilha, num circo sem graça, mais valia chamar-lhe ​”Arena​” da República, e veremos se não será assim um pouco por toda a sociedade, a quebrar-se, como vemos suceder no Brasil ou nos Estados Unidos.

Resta comparecer, estar presente no espaço público, e responder serenamente se interpelados. Nunca permitir o lugar do medo, seja na Assembleia, ou em qualquer outra parte. Cidadania deve nos tempos vindouros significar resiliência política.

Mas, agora, sem eleições legislativas no horizonte, o que devem fazer os partidos políticos que acreditam nos valores da Constituição e do 25 de Abril?

À democracia não basta a aritmética do voto. O velho Rousseau bem alertava: é preciso que a vontade de todos, ou da maioria, não deixe de exprimir a vontade geral, não deserte do interesse comum. A preservação desse elo é o que distingue a democracia da demagogia. A resposta que urge é, pois, garantir o comum.

A direita que quer partir a espinha à Constituição é sem dúvida uma ameaça à democracia, porque mistifica e é persecutória, manipula medos, incendeia e convida à violência. Mas apontado tudo, há que dizer, no fim, que é também uma consequência de um problema de fundo e que cresce. O incêndio só deflagra num solo cada vez mais seco. Nem tudo se resume a condições materiais, mas achar que estas não estão no cerne da questão é uma ingenuidade, que vem acompanhada do tremendo erro de pôr no centro o que tem de deixar de ser centro de atenção.

O que importa ver, e importa muito porque não está claro, é que ​a​ sociedade portuguesa, atravessada por desigualdade e pobreza, é cada vez mais uma sociedade de classes mas, ao mesmo tempo, de escassa consciência de classe​. ​Por um lado, ​vive um bloqueio real, doloroso, de vidas adiadas, o risco da pobreza sempre no horizonte​; por outro, todos os meios de resposta ​estão rarefeiros.

A missão política dos partidos de esquerda, ou mesmo dos que se revêem nos valores constitucionais, não pode ter por o mais prioritário confrontar aquela direita, mas sim articular uma acção política que fa​ça frente ​ao desespero de classe de tantos. O interlocutor não é o adversário político, mas as pessoas, com as suas vidas bloqueadas. Seria devastador que o referente da acção política passasse a ser um partido populista incendiário. A resiliência está também em saber resistir ao regime reactivo da indignação. A prioridade é escutar as pessoas e apresentar algo em que acreditar, com sentido, fazedor de comum.

É preciso nutrir ideias que respondam poderosamente aos grandes problemas do tempo, sem deixar ninguém de fora. Que cada partido faça as suas escolhas para responder ao repto de uma política para todos – seja o direito à habitação, ao trabalho, à semana de 4 dias, ao rendimento básico incondicional para jovens, sejam todas, ou outras – não há mal nenhum em serem diferentes, importa é que sejam claras e sejam uma brisa de ar fresco para a democracia, ideias convictas, tanto melhor se a implementação for um adquirido, e se não for esse o caso, acredite-se que os bons fins geram os bons meios.

Não consta que António Arnaut, advogado e poeta, tivesse uma robusta demonstração da sustentabilidade do SNS aquando da sua criação.  O “Despacho Arnaut” vale​u pelos fins​ que subscrevia, um sistema de saúde para todos, tendencialmente gratuito, que não deixa ninguém de fora.

“Não deixar ninguém de fora” devia ser um mantra, tão atento às minorias, como à maioria, e às mane​i​ras como ela se segmenta, o voto em zonas industriais deprimidas, por exemplo na Marinha Grande, o voto ​urbano no distrito de Setúbal, o voto ​pelo país todo dos rapazes nos vintes anos, o voto dos homens com menos formação, o voto das pessoas que servem em forças policiais, o voto das pessoas que frequentam igrejas evangélicas. Chegar a estes concidadãos – e uso este verbo porque recuso perder uma palavra que seja – e não entrar numa lógica nós/eles​, é o trabalho a fazer em proximidade. É preciso perceber e religar.

Seria igualmente devastador que o referente da acção política passasse a ser a necessidade performativa de cavar diferenças artificialmente empoladas, por vezes através de “superiorismos” morais, face a outros partidos que partilham valores muito semelhantes.

Às vezes, escandaliza o narcisismo das pequenas diferenças que afecta boa parte da esquerda, fonte de ressentimentos, orgulhos feridos. Bem sei que dizer isto é contribuir para o mesmo. Vamos pela positiva: é preciso conviver com a diferença, de visões e de culturas, ter vontade de que essas diferenças se exprimam, e prescindir de tanta ênfase em ter razão – em política, “ter razão” é uma afirmação de sentido muito relativo. Importa é construir vontades em torno do comum.

Uma política de partidos ​também não ​se pode resumir a uma colecção de activismos. Porque deve estar obrigada ao que nenhum activismo está obrigado – não deixar ninguém de fora. A política dos partidos tem de escutar os activismos, tem de os respeitar – o que também passa por não tentar controlá-los – e permitir-se ser porosa à sua mensagem. Acolher em vez de enquadrar. Precisamos de partidos e precisamos de activismos.

E precisamos ​tremendamente de sociedade civil. Não apenas a sociedade civil que se confunde com capacidade de lobby, mas a sociedade civil de cidadãos que não pertencem a aparelhos partidários, mas têm o que dizer​ se não estivessem votados ao papel de meros eleitores, que consomem programas e listas de candidatos fechadas.

A profissionalização da política é um atalho que evita o envolvimento da sociedade civil. Empobrece a democracia e convida a perpetuar quem fica de fora e quem fica de dentro. Partidos políticos encerrados nos seus aparelhos, impermeáveis à sociedade, dirigentes e militantes a somarem uma minúscula minoria da população, à volta de 2%, é um gravíssimo problema​ de participação. É preciso envolver a sociedade civil​ como quem convoca uma política do comum.

A pergunta era que devem fazer os partidos políticos que acreditam nos valores da Constituição e do 25 de Abril? Uma coisa tem de se exigir à AD: que honre o programa político com que se apresentou a eleições e em que num punhado de ocasiões é feito apelo aos valores constitucionais. A Constituição não foi a votos nas eleições. Seria um golpe de regime.