A Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento começou no passado dia 30 de junho, em Sevilha. Aberta com a pompa e circunstância típicas de uma sessão com estas características, notou-se a ausência de um ator global, os Estados Unidos da América.

Os Estados Unidos da América têm sido os maiores doadores para o sistema internacional de apoio ao desenvolvimento. Contudo, as novas políticas da presidência norte-americana, baseadas na desagregação da agência de apoio externo – USAID – anunciam uma nova postura da superpotência.

Enquanto os Estados Unidos da América reforçam a perceção global da sua hegemonia militar e impõem novos ritmos às relações económicas, com a ameaça de aumento das tarifas comerciais, retiram-se das ações bilaterais ou multilaterais de apoio ao desenvolvimento.  Significa que, cientes do poder ainda o usam para as suas relações com outras geográficas, recuando, contudo, quando se trata de políticas multilaterais de corresponsabilidade na governação global.

A grande questão é como este novo posicionamento dos Estados Unidos poderá afetar as relações multilaterais de que foi um dos maiores edificadores. O Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, não deixou de mencionar esta ausência, alertando a superpotência para as eventuais consequências desta demissão de responsabilidade para com o mundo multilateral de que foi coconstrutora.  Não participar e reformar o multilateralismo existente pode ter como resultado a construção de novas formas multilaterais por parte dos que não se reconhecem no formato multilateral atual.

O Secretário-Geral das Nações Unidas tem sido claro na sua abordagem à reforma do sistema multilateral e na defesa inequívoca da diplomacia como solução para os grandes problemas do mundo. A sua mensagem relativamente aos aspetos que carecem de governação global tem sido coerente e sustentada numa tentativa de aproximação e conjugação de interesses. A questão da governação do oceano, da emergência climática ou do desenvolvimento sustentado estão sempre presentes na sua perspetiva como parte essencial de um governo do mundo, assente no multilateralismo.

Para muitos de nós, que nunca sentimos a ação das Nações Unidas ou o seu papel, parece-nos que o sistema está esvaziado e já não tem qualquer função. Contudo e apesar da inoperância, sobretudo resultado da dependência das decisões do Conselho de Segurança, as Nações Unidas constituem-se como o fórum de discussão das políticas globais do oceano e da emergência climática, promovem programas globais de ação na área da saúde, da educação, da alimentação e asseguram a manutenção de paz em cenários de conflito. Este papel não tem sido despiciente nem pode ser deixado sem nada que o substitua.

O que mudou?

António Guterres afirmou que não se trata de uma conferência para a caridade. É antes uma conferência para a dignidade e justiça globais. É uma conferência que apela à responsabilidade social de todos os Estados e das empresas privadas, e à participação ativa dos cidadãos para a construção de um mundo mais equilibrado e com menos conflitos.

No discurso das Nações Unidas verifica-se uma progressiva mudança, que foi transposta para as políticas públicas propostas dentro deste sistema. Foram consideradas as propostas dos países menos avançados, como para o caso do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 14 sobre a Proteção da Vida marinha que nasce da iniciativa de microestados insulares, foi dada voz e assumida uma posição participativa por parte de estados em desenvolvimento.

No fundo, as Nações Unidas tentaram dar uma resposta às reivindicações de uma construção da governação global mais democrática no sentido de mais participada, como única forma de manter o sistema multilateral saído do pós Segunda Guerra mundial.

Tudo mudou desde esse momento. Um sistema que começou com 51 países, tem agora 193 estados-membro. Se os números não falam suficientemente alto, acrescentemos os desafios de governação global, os riscos que as novas tecnologias trazem e a imprevisibilidade quanto à sobrevivência humana no planeta.

A adaptabilidade torna-se imperativa para a sobrevivência do próprio sistema multilateral global. A fragmentação em multilateralismo de carácter regional poderá fomentar um outro tipo de governação, baseado na interação entre blocos, mas desvirtuará a ideia de partilha dos bens comuns da humanidade.

Esta conferência reflete esta postura adaptativa do sistema das Nações Unidas, mas também os anseios dos países menos desenvolvidos. Contudo, deixa ainda entreaberto qual será o papel das médias potências ou até da segunda economia do mundo.

Os novos atores

Na verdade, emergiram novos atores, diferentes dos tradicionais. Se olharmos para a lista das maiores economias do mundo, verificamos que é encabeçada pelos Estados Unidos, seguidos pela China, depois a Alemanha, o Japão e a Índia. Verificamos, pois, que três das maiores economias são asiáticas, deslocando a fonte de poder económico e resultando numa maior ambição política face à governação global.

Acrescem às cinco maiores economias, potências regionais como o Brasil, a África do Sul, a Indonésia ou a Arábia Saudita. Todas com pretensões de contribuição para a governação global. Contudo, alguns países encontram-se completamente ausentes de contributos reais e efetivos para a governação global ou fazem-no de forma diminuta, como é, por exemplo, o caso da Arábia Saudita. Se olharmos para as missões de paz, chegaremos à mesma conclusão.

Quer isto dizer que, talvez, a melhor forma de corresponsabilizar as médias potências seja também exigir um maior esforço da sua parte para a governação global, não só em termos de financiamento e recursos humanos, mas de comprometimento com as regras do multilateralismo.  Se esse esforço não for feito agora, outras alternativas serão propostas o modelo até agora seguido poder-se-á tornar disruptivo.

A escolha final será entre a reforma com a manutenção de parte do statu quo ou novas soluções, provavelmente menos agregadoras. Já não estamos perante os nacionalismos isolados do final do século XIX e início do século XX, contudo, o recurso à força para conseguir objetivos parece estar a generalizar-se. Já não acreditamos que o mundo pode ser liderado unilateralmente, mas temos o recuo do multilateralismo.

O que virá será novo, mas as declarações de Guterres são para reter. A ausência dos Estados Unidos da maior conferência multilateral de financiadores do desenvolvimento do mundo é reveladora de um estilo de política que por agora poderá soar a liderança pelo impacto negativo que provoca, mas que, no futuro, significará uma alteração irreversível no sistema multilateral, tal como o conhecemos hoje.