Entrámos num momento de definição relativamente ao futuro. A sociedade acelerou significativamente numa série de frentes estruturais durante a pandemia, e que deverão ganhar contornos de consolidação em 2022. A pairar como uma nuvem cinzenta permanecem uma série de dúvidas. À cabeça está certamente a preocupação com as mutações do vírus: afinal quando é que é que acaba, quando podemos retomar com segurança as nossas vidas? E de seguida, em que condições e a que custo retomaremos uma certa nova normalidade? Para já, o cidadão parece ainda adormecido relativamente às condições com as quais vamos viver de hoje em diante, e que poderão afetar uma parte relevante das nossas vidas, não apenas no que diz respeito ao trabalho remoto ou à digitalização. Em tempos de balanço de final de ano, existem, por isso, uma série de desafios que julgo que faz sentido abordar como exercício de reflexão para um futuro que está mais próximo do que se está a debater em Portugal.
O processo de normalização da vida pós-Covid está em curso, mas não desapareceu por completo
As notícias relativamente a novas e potencialmente mais contagiosas estirpes trouxeram nos últimos meses novos receios quanto a um prolongamento sem fim da era marcada pela pandemia, numa altura em que já muitos nos preparávamos para um regresso à normalidade total da atividade económica. Contudo, as restrições voltaram, e sobretudo na Europa, vão-se acumulando novas estratégias de gestão de equilíbrios entre as curvas sanitária e de impacto na atividade económica. Na verdade, este processo incerto é também ele um causador dos chamados “gargalos” que estão a afetar os preços e disponibilidade de certos bens por toda a economia. No caso de Portugal, será interessante perceber de que forma eventuais surtos nos próximos meses poderão afetar a inflação nos bens e energia, mas também relevante para entender como poderão afetar, por exemplo, a temporada de 2022 do Turismo, que tem uma dimensão bastante relevante na economia nacional. O desenvolvimento de novos e importantes medicamentos antivirais está previstos para o final do primeiro trimestre (como o Paxlovid da Pfizer9, mas ainda levará tempo até que possa estar totalmente disponível para distribuição em massa, pelo que não é ainda certo que finalmente se possa ter o sector do Turismo a funcionar a 100% sobre este ponto de vista.
O mercado de emprego e a desintermediação
Outro dos campos que mais curiosidade desperta tem a ver com a transição que pode existir no mercado de trabalho, e na forma como o teletrabalho poderá conquistar um lugar fixo na sociedade de hoje. A verdade é que a pandemia mudou a forma como olhávamos para a tecnologia disponível, que, num ápice, passou a elemento essencial do dia a dia. Isto tornou-se real na forma como foi possível, por um lado, dar sequência à procura através das plataformas de aquisição de bens e serviços online, e por outro manter a produtividade e oferta de alguns serviços através da conectividade virtual (ex: reuniões, consultadoria ou aulas via plataformas como o Zoom). Estas alterações permitiram inclusivamente a redução de custos de estrutura operacional (são necessários menos metros quadrados de escritório e o seu espaço físico pode ficar fora dos centros urbanos). Algumas destas alterações poderão ter-se tornado permanentes. Haverá certamente ainda muita discussão neste campo, e em Portugal, por certo, será uma tendência para acompanhar em termos de discussão dos termos da lei laboral.
Comprar casa pode estar mais longe dos centros urbanos, em nome de mais qualidade de vida
Após uma maior normalização dos hábitos pós-pandemia, certamente que o número de adeptos de uma proporção de trabalho remoto tenderá a ser superior àquele que analisámos aqui neste ensaio. O registo elevado do número de profissionais que estão rapidamente a adaptar-se a novos hábitos, conjugado com o investimento que as empresas fizeram em tecnologia e adaptação produtiva para este ciclo, criam condições para as estatísticas disponíveis registarem uma subida significativa. Ou seja, é provável que exista um aumento estrutural e permanente do trabalho remoto, sobretudo no que diz respeito aos que o farão em regime parcial como formato base.
Não seria descabido considerar, a título de extrapolação, que os números atuais relativos aos países mais adaptados (ex. Suécia) possam ser o ‘novo normal’, e que o teletrabalho no seu todo possa valer cerca de um terço em média no espaço das economias mais desenvolvidas, como é o caso dos países europeus. Num cenário destes, isso implicaria menor comutabilidade no que respeita ao acesso aos grandes centros urbanos, o que pode potenciar relevantes alterações no papel das grandes cidades durante os próximos anos.
Confrontados com condições de trabalho mais flexíveis que permitem, pelo menos de forma parcial, utilizar a sua área de habitação como escritório, ao qual acresce uma perceção relacionada com os riscos de novas pandemias similares, em que os vírus poderão propagar-se mais rapidamente em zonas de maior densidade populacional – e no caso da Covid-19, as áreas mais críticas têm sido as cidades de grande densidade e dimensão –, não será surpresa que muitos dos profissionais que podem trabalhar remotamente ponderem deixar de viver no epicentro de grande áreas urbanas.
A pandemia reverteu conquistas das últimas décadas e acentuou a desigualdade de género no trabalho
Uma das cruéis consequências da pandemia prende-se com a fragilidade das condições laborais das mulheres, que aliás tem sido comum em situações de crise. As cicatrizes que a Covid-19 tem deixado nas empresas um pouco por todo o mundo desenvolvido têm tido custos significativos no progresso da equidade feminina. De acordo com a PWC, as condições laborais das mulheres nos países da OCDE deverão registar este ano um retrocesso para níveis de 2017, e existem riscos de perca permanente de postos de trabalho disponíveis para as mulheres caso não sejam tomadas medidas específicas para proteger as condições de paridade no acesso ao emprego.
A taxa de desemprego feminino no agregado dos países da OCDE deverá ter aumentado entre 2019 e 2020 em cerca de 1,7%, para 7,4%, acima do aumento verificado no desemprego masculino (+1,5%) durante o mesmo período. Este impacte é explicado pela fragilidade estrutural dos postos de trabalho tradicionalmente ocupados por mulheres, que por um lado estão nos sectores que foram mais atingidos pela pandemia – a Organização Mundial do Trabalho refere que 40% das mulheres trabalham em segmentos muito afetados pela Covid, como hotelaria, restauração, retalho ou imobiliário – e, por outro lado, também estão tradicionalmente em posições de carreira mais precárias dentro das suas empresas, e consequentemente, mais vulneráveis quando decorrem processos de despedimento coletivo.
Dentro da OCDE, e apesar de bem classificado, Portugal tem mostrado alguma deterioração no que diz respeito às assimetrias de género. Portugal terá sido o país que desde 2018 apresentou a maior deterioração do diferencial salarial entre homens e mulheres (de 9% para 14%), tendo por isso recuado do 6.º lugar do ranking do Women in Work Index para 11.º lugar, em 2020. O incentivo económico para apostar na paridade representa para Portugal um prémio interessante. Na mesma análise simulada para a OCDE, Portugal, com o “padrão Suécia”, teria um impacte adicional de 13 mil milhões de euros no PIB, ou seja, um contributo anual de 4% para a criação de valor na economia. A estratégia da União Europeia para eliminar este diferencial salarial será assim um acelerador estrutural para a mudança. Afinal, se é socialmente positivo e de elementar justiça, e se cria riqueza para a economia e para as empresas, não há razão para não fazer da equidade uma bandeira para as próximas décadas. Será também um estruturante para acompanhar no ciclo pós-Covid.
A biodiversidade e sustentabilidade como centro das estratégias das empresas?
A pandemia trouxe consigo um efeito acelerador sobre algumas tendências de longo prazo, que agora parecem estar a conquistar um carácter mais definitivo. Um destes efeitos está relacionado com a relevância da sustentabilidade ambiental, e da descarbonização, que conquistaram um papel absolutamente fulcral para as próximas décadas. À medida que os governos e instituições como a Comissão Europeia começaram a anunciar planos de recuperação estruturais para as próximas décadas, no fundo uma grande transição económica pós-Covid, começou a ficar patente que grande parte desta transformação estará assente no desenvolvimento de projetos, tecnologia e iniciativas ligadas à sustentabilidade ambiental. Por outro lado, sabemos que esta agenda global das nações tem colidido no passado com os objetivos naturais das corporações – que procuram maximizar os retornos financeiros dos seus investidores – e afinal é legítimo perguntar se existem razões para acreditar que as corporações poderão ser promotoras da mudança estrutural ambiental.
As empresas têm uma relação de mão dupla com a natureza, e as empresas começam agora a avaliar as suas dependências e impactos na natureza. Por exemplo, a utilização de matérias-primas das florestas é um exemplo de dependência e impacto na natureza e apresenta um risco real para as empresas – de forma direta ou indireta as empresas em quase todos os sectores estão expostas de alguma forma a este risco. Aliás, quase metade da economia mundial está exposta ao risco da sobreutilização de recursos naturais. Isto significa que a deterioração dos recursos e do ecossistema da natureza constitui um real risco sistémico que deve ser encarado como tal pelos diversos stakeholders (governos, instituições, empresas, entre outros), e os sinais que vão sendo dados, quer pelo quadro regulatório e de incentivos financeiros, quer pelas tendências definidas pelos investidores no mercado financeiro (onde o investimento sustentável ou ESG tem vindo a mostrar-se rentável e preponderante) mostram que a mudança de paradigma pode estar a caminho de forma sustentada.
Bottom’s up: A mudança está a caminho e cria desafios também nacionais
A saída da pandemia pode ser um processo que ainda levará algum tempo, mas parece agora inevitável que iremos enfrentar desafios decisivos que marcarão as próximas gerações. Alguns mais internacionais, outros que também têm impacte nacional. As relações entre os cidadãos, a forma como podem continuar a acreditar na sociedade enquanto mobilizadora para progresso das vidas e ambições individuais, a família, a pegada de carbono zero, mais qualidade no ambiente de trabalho, são algumas das reflexões que podemos em breve começar a ver no palco central das discussões de medidas de políticas públicas. Certo é que muito está relacionado com os projetos e fundos europeus, mas também existe uma palavra a dizer sobre estes temas, e que seria muito importante que existisse mediatismo suficiente durante a próxima campanha eleitoral, que é já em janeiro, para se debater. Seria sem dúvida um sinal de qualidade democrática e uma oportunidade para os cidadãos de terem maior consciência sobre o que vem aí e que vai moldar a forma como vivemos.
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