O extraordinário acontecimento que na última semana rivalizou, em todo o mundo, com as notícias da pandemia (contágios, confinamentos, vacinas, testes, emergências, etc.) foi um navio encalhado.
Não é um navio qualquer segundo nos explicam: cabe lá dentro uma cidade, quatro campos de futebol e prédios de 20 andares. Tem 22 mil(?) contentores recheados de comida, carros e semicondutores. E esteve preso no Canal de Suez sem que ninguém, durante quase uma semana, o conseguisse libertar. E o episódio que bem poderia passar por um fait-divers tornou-se num drama.
Sabe-se agora que o acidente há muito que tem sido antecipado por quem sabe da matéria. Por um lado, os navios são cada vez maiores, com maior capacidade de carga e maior sofisticação tecnológica. Por outro, o trânsito internacional de bens, sobretudo entre a China e a Europa, multiplicou-se nos últimos anos com uma preocupação crescente quanto à rapidez das transacções e à redução do seu custo.
A concluir, diz-se que o Canal de Suez, pese embora as melhorias sofridas nos últimos anos, mantém ainda parte do seu traçado tal como foi concebido no tempo da sua inauguração, ou seja, limitando a circulação a um único sentido dada a largura e profundidade do canal em alguns troços.
Ora, em matéria de antecipação das trapalhadas que poderiam ocorrer no Canal, o nosso Eça de Queiroz, que como sabemos, lá se encontrava na inauguração, em 1869, não poderia ter sido mais premonitório: relata as inquietações das “oficialidades, comissários e engenheiros” no dia da inauguração, quando um pequeno vapor encalhou impedindo a passagem dos restantes.
O próprio Eça confessa que “o canal aparecia-nos estreito, baixo, e a cada momento receávamos ver a proa do navio ir atufar-se nas areias das margens elevadas” Daí concluir, irónico: “era doloroso ver tudo aquilo findar repentina e vergonhosamente, ver-se que num canal feito para a navegação não cabiam navios, que aquilo era uma obra ridiculamente grandiosa, e que em lugar de tudo terminar em triunfos, tudo terminava em gargalhadas!”.
A situação acabou por se resolver e Eça não deixou de elogiar o homem responsável pela obra “Mr. De Lesseps”. Mas, pelos vistos, o que viu e relatou mantém actualidade. Com a diferença de que aquilo que há 150 anos acabaria certamente em “gargalhadas”, é hoje considerado um desastre económico-financeiro à escala mundial. Sinal dos tempos.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.