O Observatório da Luta Contra a Pobreza na Cidade de Lisboa organizou um livro de fotografia intitulado “Re-flectere: um Olhar sobre a Pobreza em Lisboa” – fotografias de Marcelo Londoño e textos de Catarina Cruz. A exposição fotográfica está em exibição até 31 de janeiro no espaço Caleidoscópio da Universidade de Lisboa (Jardim do Campo Grande). Trata-se de um projeto interessante e bem conseguido que vale a pena conhecer. A leitura do livro e a visualização da exposição sugeriram-me algumas considerações sobre os processos de internalização de certos mitos em torno da pobreza.
Um desses mitos correntes, e que perduram na sociedade portuguesa pelo menos desde o Estado Novo, é o da pobreza envergonhada, ou seja, a noção generalizada de que a pobreza em Portugal tende a ser escondida e encoberta. Uma breve problematização sobre o modo como estas expressões se foram normalizando, leva-nos a questionar até que ponto elas acabam por pôr o ónus do lado do pobre que supostamente esconde (estrategicamente ou não) a sua situação de pobreza. Legitimando-se, desta maneira, a noção de que este não quer mostrar porque tem pudor da sua condição ou se sente embaraço com ela e, por isso, tende a encobri-la aos olhos dos outros (não pobres). A este ato de esconder associa-se muitas vezes um certo juízo moral sobre a honradez e a humildade da pobreza envergonhada, segundo o qual aqueles que vivem privados de um conjunto de recursos materiais básicos não devem exibir a sua condição vulnerável.
Ao depararmo-nos com estas e outras expressões similares é importante questionar até que ponto este mito tem sido construído sobretudo por quem não quer ver, e não tanto por parte daquele que não pretende mostrar. Em muitos casos o incómodo está do lado de quem esconde o olhar, considerando legítimo e até um ato de respeito não olhar para a pobreza que supostamente se auto-encobre. A naturalização deste mito resultou de uma construção coletiva alimentada e difundida em muitos casos, mas não exclusivamente, pelas classes sociais mais favorecidas e com poder acrescido na sociedade portuguesa. A sua eficácia foi a de isolar a pobreza enquanto problema que tende a ser individualizado quer como realidade quer como causa.
Dito de forma mais explícita, a causa da pobreza é vista como tendo origem em atos que derivam de incapacidades individuais, sejam de ordem psicológica ou de elementos de personalidade (preguiça, libertinagem…), sejam decorrentes de características físicas (por vezes de natureza étnica e racial) ou de enfermidades e doenças. Por seu turno, a pobreza tende a ser remetida para territórios circunscritos da cidade, como se esses espaços se escondessem por efeito da ação voluntária. Ao naturalizar a pobreza como realidade isolada esta torna-se num problema específico de alguns indivíduos e de grupos restritos, cuja solução depende antes de mais da sua predisposição para enfrentarem as suas incapacidades.
Quantas vezes não se ouve dizer que a pobreza só se resolve com a alteração das mentalidades…? Como se quase tudo dependesse apenas da vontade individual em querer mudar para uma vida melhor. A este respeito, convém notar que muitas das iniciativas de solidariedade para com os mais pobres, por vezes de caráter assistencialista, não conseguem (ou não lhes interessa) romper com este tipo de noções que enfatizam a responsabilidade individual como o único caminho para se sair da condição de pobre.
Este livro pretende olhar a pobreza para além destes e de outros mitos. Ao fazê-lo revela uma série de histórias pessoais que vivem nos espaços habituais da cidade de Lisboa, sítios que nos são familiares e constituem os nossos quotidianos. Ao tornar público o olhar, este projeto pretende desnaturalizar a pobreza enquanto fenómeno isolado e individualizado. Trata-se de um exercício assumido de politização que questiona a ideia enraizada da pobreza escondida e envergonhada, demonstrando que esta se encontra incorporada nos locais da cidade em que vivemos todos os dias. Politizar significa demonstrar que esta é uma questão pública e de todos, cuja resolução e erradicação não passa pela mera alteração das “mentalidades individuais”.
Desde logo, é necessário relacionar as várias dimensões estruturais que estão na base da produção de trajetórias de empobrecimento e de marginalização, no sentido de identificar e salientar as suas causas sociais e económicas que, como se sabe, agravaram-se notoriamente com o impacto da crise e das políticas de austeridade: por via do desemprego estrutural, da perda de rendimento nos salários e nas pensões, da precariedade laboral, do aumento das rendas da habitação… Estes e outros fatores, que não dependem das vontades individuais, tiveram consequências devastadoras na vida de muitas pessoas.
Na verdade, não só as causas são na maior parte das situações exteriores à ação voluntária dos indivíduos, como as atitudes e as mentalidades de pouco valem quando confrontadas perante processos sociais e económicos produtores de desigualdade e de exclusão.
Desmitificar a pobreza significa também um questionamento sobre o direito à cidade. As pessoas que surgem no livro foram arredadas de viver a cidade na sua plenitude, não pelo facto de quererem esconder-se, mas porque a cidade vai construindo formas diversificadas e incrementais de invisibilidade. Uma das mais recentes relaciona-se com as atuais dinâmicas de ‘turistificação’ e da crescente especulação imobiliária. Se não forem devidamente enquadradas e controladas pelas políticas públicas, estas poderão a prazo expurgar do centro urbano as situações mais incómodas para o tal olhar que não quer ver, que neste caso também é o olhar do turista. E isto representa um risco muito sério.
A pobreza deve ser erradicada, enquanto problema social, por intermédio de políticas estruturais de inclusão social enquadradas nos sistemas públicos de proteção social (em articulação com outros setores). Não é nada positivo que esta seja simplesmente apagada dos olhares, dando assim continuidade, embora com outras roupagens, aos mitos vindos de um passado longínquo e que vão persistindo.